Um caminho percorrido em 15 dias de quarentena

Um caminho percorrido em 15 dias de quarentena
(Foto: Mídia Ninja)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de março de 2020 é “racismo”


Comecei a traduzir The vigilante, de John Steinbeck, no terceiro dia de quarentena para aprender inglês. O livro tem, além do conto do título, outros dois contos: “The snake” e “The Chrysanthemums”. Não é uma tarefa fácil para iniciante, ainda mais por se tratar de uma obra ficcional. A meu favor estava a paixão que nutro por literatura e história. Esse último quesito foi o que ajudou bastante no conhecimento sobre o que eu estava traduzindo.

Primeiramente, eu não conhecia esse conto de Steinbeck. Deste autor, apenas tinha lido o livro Sobre ratos e homens, numa tradução da editora L&PM. Também não fiz nem um tipo de busca na internet para conhecer algum resumo acadêmico sobre o livro. Bom, em um site de busca pesquisei sobre o escritor mas só para saber informações que são relevantes, como o ano em que foi escrito para entender o contexto. Então, a partir desta compreensão estabeleço uma conexão com a historicidade, a indumentária, cultura e mentalidade da época. É importante saber esses tipos de coisas, porém, são tipos de conhecimentos importantíssimos para que a narrativa se estabeleça melhor e se crie uma ideia mais precisa sobre que sentimentos ou que intenções o autor buscava manifestar. Com poucas páginas, o conto parecia tranquilo e sem muito ornamento linguístico.

O abalo, ou como diz minha geração, o tombo, veio ainda na terceira linha da primeira página: a crowd of people still stood under the elm trees / uma multidão de pessoas ainda ficou debaixo do olmo. Então, rapidamente faço uma busca no Google Images para ter certeza se era mesmo essa árvore, olmo. Quando veio a comprovação assustei-me com a ideia que tive do que poderia se tratar o conto: o linchamento de um homem negro. Respirei fundo antes de continuar. No entanto, fui tomada por uma série de referências, a começar pela primeira imagem que me fez tomar conhecimento sobre essa prática racista na chocante cena final do filme A chave mestra,  que assisti em um canal aberto de TV.

Na cena (aviso de spoiler), um grupo de pessoas brancas reunidas em torno de um olmeiro, em total clima de festa, enforca um casal de negros. Os donos da casa, patrões brancos, descobriram que seus empregados negros estavam fazendo prática de hudu, um segmento do Vudu, com seu casal de filhos. (Só um adendo: a prática do linchamento contra a população negra tornou-se comum após o fim da escravidão em todo território estadunidense, que pôs fim também aos castigos corporais legalizados durante o sistema escravocrata, firmando-se ainda durante a Guerra Civil do país e permanecendo até a vitória do Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos EUA). O que me impressionou no filme é que o casal de negros conseguiu realizar o feitiço e seus espíritos foram encarnados nas duas crianças, portanto, não morreram, os empregados passaram a viver nos corpos de dois brancos ricos.

Outra imagem que surgiu fazendo essa ligação entre o olmeiro e o linchamento de negros nos Estados Unidos da América foi do filme Django livre, que se passa numa época em que castigos para as pessoas negras escravizadas eram estabelecidos por lei. O personagem Django interrompe a prática de um desses sofrimentos infligidos a uma mulher escravizada, que estava amarrada à uma árvore de olmo sendo chicoteada, repelindo o carrasco aplicando-lhe também chicotadas. Lógico, uma cena anacrônica, ou pelo menos não temos fatos que comprovem a existência de uma reação assim feita individualmente por escravizados; houve revoltas, mas a reação é sempre em grupo. O que Django faz, de certa forma, é lavar a nossa alma com essa possibilidade, uma retaliação primorosa que desejamos veementemente ter acontecido. Ou como cantava Paul D. no livro Amada, de Toni Morrison: “Eu prefiro colocar a minha cabeça sobre os trilhos do trem do que pacificar a minha mente… Eu quero chicotear meu capitão até ele ficar cego de pedra” (tradução livre).

Volto novamente ao filme A chave mestra para ajustar minha percepção que este não é apenas um filme de terror – assim tentou fazer parecer a branquitude, porém é um filme que pune àquelas pessoas brancas em torno do olmeiro que fizeram justiça com as próprias mãos. E sabe o que dizem? “A vingança pode ser mais violenta que o crime”. Acho que isso vale para todos. Minha mente agitada, emoções afloradas. Enquanto digito ouço Strange fruit, de Billie Holiday: “Árvores do sul produzem uma fruta estranha/ Sangue nas folhas e sangue nas raízes/ Corpos negros balançando na brisa do sul/ Frutas estranhas penduradas nos álamos/ Cena pastoril do valente sul/ Os olhos inchados e a boca torcida/ Perfume de magnólias, doce e fresca/ Então, o repentino cheiro de carne queimando/ Aqui está a fruta para os corvos arrancarem/ Para a chuva recolher, para o vento sugar/
Para o sol apodrecer, para as árvores derrubarem/ Aqui está a estranha e amarga colheita.”

Silêncio. Quero escolher outra música. Não, quero ouvir e ver Nina Simone cantando Mississippi goddam. Quero assistir sua revolta tocada em cada tecla do piano. Quero sentir sua calma acentuada quando diz and I mean every word of it/ e eu quero dizer cada palavra. E quando ela canta somebody say a prayer/ alguém faz uma oração, volto ao conto de Steinbeck, à multidão de brancos que invadem a cadeia e, com ajuda do xerife, agridem com socos o homem negro na cela. Ele cai no chão com os olhos fechados. Para Mike, um desses linchadores, o negro está morto, mas ele tem dúvidas quanto a isso. Eu acho que aquele homem negro está fazendo uma oração. Quando ele sente que a morte é certa, não acredita mais em sua prece. Ele sabia que esse dia ia chegar. No mundo em que vive, I think every day’s gonna be my last / acho que cada dia pode ser o último. Ele sabe, estão tentando exterminar os pretos. “Eles” dizem: estudem e terão uma boa colocação nas empresas. Mas não é isso o que acontece, continuamos fazendo os trabalhos inferiores que os brancos rejeitam. “Eles” dizem: ande como nós, vista-se como nós, veja nossos cabelos e você será um de nós. Faça o seu melhor, dizem. Mas nunca é o bastante. Todo mundo sabe. A esposa do Mike sabia que ele foi ao linchamento, mas acusou-o de ter estado com outra mulher. O garçom do bar disse que chegou no linchamento depois de tudo acabado, porém quis comprar por dois dólares um pedaço da calça do homem negro assassinado.

Simeia Santana é historiadora e livreira

 

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