Sobre ‘Um caderno para coisas práticas’, de Annita Costa Malufe

Sobre ‘Um caderno para coisas práticas’, de Annita Costa Malufe
Ilustração da capa do livro "Um caderno para coisas práticas" (Foto: Reprodução)

Se em ‘Um caderno para coisas práticas’ há um esforço de lembrar, de reter, de ouvir, só há o que aponta para a impossibilidade – de ouvir, de lembrar, de salvar

 

Ir em direção à poesia de Annita Costa Malufe seria se colocar em uma linguagem da precariedade. Desde uma posição hesitante e vulnerável, seria preciso ir como quem não sabe por onde, como quem está em suspensão, na iminência de desaparecer, tornando-se fantasma. Desde nesta cidade e abaixo dos teus olhos (2007), a poeta desliza, no limiar de instabilidade entre o poético e o filosófico, por enquadramentos oblíquos, focos embaçados, imagens borradas e fragmentadas como “rasgos de sombra instalados no vazio”. Um caderno para coisas práticas (2016) continua a tentativa de detectar uma alteridade inacessível:

não há ninguém são vultos
cortados ao meio e um longo
silêncio traços brancos quase
apagados a luz pálida de
viés a janela entreaberta um
ou dois vultos cortados ao
meio nem chegam a formar
silhuetas de pessoas só
gestos abandonados ou
fragmentos de gestos pela
metade

Versos instaurados na falta de pontuação e na falta de indicação de um título se traçam em um espaço aberto cuja retração não cessa de ser uma remissão ao que permanece não apreensível às mãos, não nítido aos olhos e incerto aos ouvidos.

Se em Um caderno para coisas práticas há um esforço de lembrar, de reter, de ouvir, só há o que aponta para a impossibilidade – de ouvir, de lembrar, de salvar: um “plano de organização” irrealizável, porque “tudo prolifera” em versos que se incineram enquanto indicam movimentos defasados, sinais indecifráveis e esquecimentos, não apontando para a memória, mas para a deformação da memória, para o que há de ininteligível, ilegível e imemorial: aquém e além da escrita e da voz e na borda entre a escrita e a voz, um “ruído intermitente” cuja emissão é indetectável (“a voz de uma adolescente/ rompia a vedação da janela/ antirruídos mas tudo/ era incompreensível”).

Se há uma ideia de finalidade no título, ela vai se esvaindo em cada página. As supostas listas (que só existem na iminência, que não chegam a ser listas) seriam imagens sem síntese: vazios, esquecimentos (“não se lembrar a data/ nem o endereço não saber/ tampouco o dia da volta”), lembranças fragmentadas se esfarelando, lacunas que não são preenchidas. Figurações da falta, da falta de resposta, de um vazio irrepresentável, “gestos abandonados ou/ fragmentos de gestos pela/ metade”, essa poesia se suporta enquanto possibilidade do exercício do que não chega a ser. Como se tudo estivesse queimando, prestes a desaparecer (“a história de um desaparecimento”), uma nota queimando na outra uma continuidade impossível, apontando com esse gesto para tudo que poderia queimar, para o que talvez nunca tenha existido, mas que poderia ter existido. Abre-se aí uma esfera ética, não se reduzindo a uma meramente estética.

Há nisso um gesto de despertar, uma “[…] vigília/ que não dá trégua”, como um acordar “todo dia em outro lugar”, uma escuta aberta ao apelo de um incêndio persistente (“vermelho descarnado fosco incêndio/ queimada visibilidade reduzida morta/ alastramento galhos fumaça vista/ fosca neblina visibilidade morta”) ao qual não se vai ao encontro senão com quem vai descarnando, como quem anota “como tudo se apaga”, como quem nota hesitante e com “olhos do avesso” o caminho erosivo sem volta (“[…] qual/ era mesmo o caminho linhas de um/ mapa invisível”) onde o outro queima.

Quase um trabalho de luto, mas um trabalho de luto impossível de ser realizado: o que essa poesia captura é aquilo que é irredutível ao trabalho de luto. Se desde Quando não estou por perto (2012) encontramos uma escrita da perda, da ausência, da falta, da queda, dos cortes por todos os lados, dos versos cortados, dos pés dos versos todos cortados, cheia de interrupções no interior dos próprios versos, e se nessa perda é a distância que é disseminada, garantindo unicamente a inapreensibilidade, neste livro, com pés também em suspensão (“eu nunca estou completamente/ aqui meus pés sempre flutuam”) e com mãos que já não conseguem alcançar e possuir (“os braços desencaixados/ do tronco tateando o vazio”), poderíamos dizer que, cada vez mais radicalmente, a distância é disseminada ao mesmo tempo em que é suprimida, pois aqui há o encontro com o irredutível da vida. Enxergando e escutando o indecifrável, como quem não pode distinguir nem ver nem ouvir com clareza, traçando um gesto fracassado, ela captura o incapturável, uma marca espectral e desviante, aquilo que não pode ser reduzido a nenhuma imagem, nenhum sentido, nenhuma forma.

Na impossibilidade de estar presente em um espaço e em um tempo determinados, e de coincidir com tudo que já durou demais (“não vou fazer nada as/ coisas já duraram demais”), nada prático ou útil há de ser feito: “em um salto sem/ alvo flutuação inútil”, formas de vida são sustentadas em um tempo de impossível correspondência: “[…] instantes que/ não pertencem ao tempo”, entre a retração e a dilatação, o “tempo [que] retrocede ou salta”, entre os espasmos e a paralisia (“o tempo se contrai se/ dilata sofre espasmos o/ tempo às vezes se paralisa”), entre “durações no mesmo dia instantes/ sem duração instantes suspensos no/ gesto levantar os braços […]”, no gesto de levantar o braço e logo interrompê-lo (“ela começou a levantar o braço/ e logo interrompeu e o gesto/ ficou como que suspenso a mão”), um gesto de suspensão, uma indecisão, um tempo hesitante, um “não sei/ quando nem se vi e/ muito menos o que”, “[…] não sei quem apontou/ tampouco qual era a explicação”.

A poesia de Annita encontra o tempo-de-agora na impossibilidade de pertencer a um tempo. Nunca chegando, estando sempre entre, sempre no meio (“muitas vezes na vida estou a meio/ caminho no meio da estrada estou/ vigiando o oco do tempo/ indo para outra direção”), é como um gesto que só se sustenta partido, pela metade, que ela se faz enquanto meio, apontando para fora, para outra direção. Mãos perdidas e pés suspensos vão viajando deslocados, acenando para todos os tempos, sustentando o indecifrável, subvertendo o objeto, suspendendo o sentido, mantendo-se na pendência, mantendo na falta a possibilidade de encarnar o informe e o ilegível como um meio de vida, devolvendo à vida o que é irredutível e incapturável à vida.

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Dezembro

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