Transgeneridade na poesia brasileira contemporânea

Transgeneridade na poesia brasileira contemporânea
(Arte Andreia Freire)

 

Entrevistada a propósito da antologia de poesia brasileira contemporânea organizada por ela, É agora como nunca (Companhia das Letras), Adriana Calcanhotto declarou mais de uma vez não ter adotado na seleção critérios de representação/inclusão de minorias. No entanto, questionada sobre a eventual importância daqueles critérios para entender o “agora” do país em termos históricos e políticos, lembrou que, apesar de tudo, sua antologia tem poetas negros, poetas gays e uma “poeta transexual falando disso em seus poemas”, como afirmou ao Suplemento Literário de Pernambuco, em fevereiro.

A suposta poeta transexual referida pela antologista seria Bianca Lafroy, que, contudo, é uma personagem criada pelo poeta cis Ricardo Corona, conforme ele mesmo revela no “transcólofon” do livro Embrulho líquido (Iluminuras), de que Calcanhotto extraiu os poemas para a antologia. Tal fato pode soar aos olhos da militância LGBT como impostura, usurpação do lugar de fala dos escritores trans, alijamento do protagonismo que lhes compete.

No entanto, a presença de trabalhos dedicados à discussão da identidade de gênero em obras compostas por escritores cis é útil para pensarmos em termos literários de que maneira aquela luta, bem como as singularidades inerentes à experiência trans, impactam representações de gênero em grande medida tributárias da mentalidade cisgênera e heteronormativa. Para isso, propõe-se a seguir o exame de dois poetas brasileiros contemporâneos.

O primeiro é Ricardo Rizzo, com o poema “Travesti negra responde”, do livro Canção do arbítrio (Patuá), parcialmente reproduzido a seguir.

TRAVESTI NEGRA RESPONDE

ao inquérito, à maçã
à flor e à náusea
à pergunta sobre o implante
ao vidente, ao búzio
à camaradagem sutil
ao chamado para viagem
à intimação para testemunhar
ao caos da gaveta de meias
a questões de múltipla escolha
à peroração do dentista
a quem interessar, sobre seu filho
ao guia turístico
a uma entrevista no final da página
a algo que a incomoda (pode ser o vento)
se pedir com carinho
à guerrilha urbana

[…]

ao apelo do rapaz para gozar em sua boca
ao pedido de ajuda do sobrinho que estuda
à gravação distorcida
à câmera de segurança
ao questionário da universidade
à encenação de Tio Vania
ao email da moça da Fundação Getúlio Vargas
ao convite para almoço no shopping
à pergunta do segurança tímido
à cera quente
ao tipo penal
à pesquisa online sobre a qualidade do atendimento
ao ser e ao tempo
mentalmente ao bilhete na caixinha com fezes
ao vagão feminino

[…]

ao spray de pimenta
à certeza de que o pau dele está duro
à canção que prefere em outro disco
à citação por edital
ao teste, à pesagem, ao desfile
ao mesmo delegado do mês passado
às boas intenções
ao estagiário
à vontade de mijar

[…]

ao Eduardo Coutinho
ao choro ao lado, no outro quarto
ao menino do gás
que pede um beijo
(a camisa puída, sem jeito)
para experimentar
ao pedido de dinheiro emprestado
à inspeção sanitária
ao recado na secretária eletrônica
à rasteira, joelhada, tapa e quetais
à pergunta se está ouvindo bem
à pergunta se está bem
à desorientação ao redor
à instrução de se acalmar
à repetição tediosa da pergunta
a alguém que quer que morra
ao estuário que invade a memória
à interpelação do porteiro
à umidade entre os seios

[…]

ao anúncio de emprego
como um morcego antigo
ao ruído que reflete
a parede das coisas
a superfície, o canivete,
o abrigo.

Com um título em que se cruzam determinações de gênero e cor, o poema realiza uma enumeração espraiada, um tanto caótica, em que as respostas da travesti dirigem-se tanto a pessoas quanto a objetos e fatos, muitas vezes sem que haja propriamente perguntas, misturando elementos bastante díspares. Nele estão presentes dimensões ligadas à visão mais tradicional sobre o cotidiano trans: referências ao universo criminal, à transfobia, ao sexo e à prostituição, ao direito de uso dos banheiros públicos e ao vagão feminino nos trens, em conformidade com a identidade de gênero, compondo o cenário da “guerrilha urbana”.

No entanto, ao lado dessas dimensões, que amiúde reforçam os estereótipos sobre a população T, vinculando-a ao mundo da infração e da promiscuidade, vemos também referências ao mundo do trabalho e do estudo, à esfera do lazer e do entretenimento; à família e aos amigos; às artes, literatura, teatro e cinema (alusões a Drummond, a Tchekhov e a Eduardo Coutinho). A passagem veloz de uma referência a outra e a não hierarquização entre essas diferentes dimensões ajudam a compor uma visão complexa da protagonista, na contramão de alguns clichês. Como uma espécie de polo magnético imantando a enxurrada de imagens, destaca-se a própria figura do excesso interpelativo e regulatório a que a travesti é obrigada a se submeter, prestando contas de sua vida sem parar, seja numa vertente mais burocrática e institucional (respondendo a médicos, delegados, psicólogos), seja em chave informal (respondendo aos passantes, ao moço do gás etc.). A imagem final do morcego antigo, buscando abrigo e segurança e tentando se orientar em meio ao som refletido por tantos obstáculos e objetos cortantes parece figurar de modo preciso e pungente o labirinto de perguntas que a travesti negra nunca termina de responder.

O segundo exemplo vem do livro A hora e a vez de Candy Darling (Editora Martelo), de Horácio Costa, resenhado por Leonardo Gandolfi na coluna “O cuidado da poesia” no site da Revista CULT. Trata-se de uma obra em que a experiência trans ocupa lugar de relevo desde o título, retirado de um poema sobre a atriz transexual norte-americana catapultada ao estrelato por Andy Warhol.

DADOS NOVOS  NA PAISAGEM

um veado gordo que quer ser fotografado
usando calcinhas de mulher bem apertadinhas
para um site gay onde ele pode postar o que bem entender
e haverá quem o encontre sexy e queira sair com ele

e uma paciente trans no melhor hospital brasileiro
talvez se recuperando de uma cirurgia de mudança de sexo
caminhando com a mãe e a tia no saguão até o caixa
para pagar o estacionamento bem na minha frente

são dados novos na paisagem e as nuvens
que se acumularam e cruzam o céu agora
não têm memória de que choveram ontem mesmo
a esta hora justo em cima da Grande São Paulo

as orquídeas que se abrem no grande vaso vitrificado
e exalam um perfume para lá de sensual não recordam se
na sua última floração resultaram tão inebriantes
ou se viraram conversation pieces como essas

do Hospital Einstein: as senhoras às três da tarde
já esgotaram todos os assuntos no saguão mas
ninguém que falasse da bicha trans que calçava
número 45 e tinha peitos fartos como Sofia Loren:

preferiram o tema das orquídeas nesta época do ano
e que perfume! não dá para crer! porque, sim,
há algo de novo na paisagem e as senhoras, ah,
têm andado mais cuidadosas com o que dizem.

Costa parece embocar no problema transgeneridade por um viés mais otimista, retratando uma situação relativamente excepcional, dependente de privilégios de classe. Em vez de longas esperas na fila do SUS, antecedidas por dezenas de laudos, ou de intervenções em clínicas clandestinas, cirurgias no “melhor hospital brasileiro”, com assistência da família (mãe e tia); no lugar da espetacularização constrangedora, a polidez das testemunhas que, cuidadosas, preferem falar sobre flores no saguão do hospital – tudo aprendido como sinal de novos tempos, novos sentimentos, novas paisagens.

No âmbito da linguagem, porém, a assimilação da novidade talvez seja parcial, conforme atesta o emprego da expressão “mudança de sexo”, substituída de uns tempos para cá por outras, como “processo transexualizador”, “redesignação genital” ou “redesignação de gênero” – embora o emprego da expressão “antiga”, de uso mais difundido pareça consistente com o ponto de vista do eu lírico, não necessariamente afeito ao jargão médico, especializado. A “bicha trans” é outra expressão problemática, pela confusão que enseja entre identidade de gênero e orientação sexual, da percepção equívoca das mulheres trans como homossexuais masculinos (sendo em verdade heterossexual uma mulher trans que se relaciona com homens, e lésbica a que se relaciona com mulheres).

Por fim, caberia especular se não haveria algo de irônico em relação ao tema das orquídeas, que servem de pretexto à desconversa das senhoras confrontadas com a trans de peitos fartos e sapatos número 45. Vale lembrar que o nome “orquídea” deriva de “órkhis”, testículo em grego, por causa do formato do bulbo dessas flores – o que repõe de modo sutilíssimo o assunto do qual a conversa pretendia desviar.

FABIO WEINTRAUB é doutor em Letras pela USP, poeta e crítico literário

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