Sonho de valia existencial

Sonho de valia existencial
(Ilustração: Marcia Tiburi/Revista Cult)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2021 é “sonho”.


Subitamente me percebi na casa de Iranilde, já que a minha casa, em frente à sua, estaria à venda desde que nos mudamos de estado. O que eu fazia ali? Não me lembro de ter questionado. Nesse momento, os materiais oníricos que não têm sentido são os mais vívidos na memória.

Enquanto deslumbrava minha casa, olhando-a com grande angústia devido ao seu estado de degeneração, visualizei uma caminhonete avançar contra o portão. Dentre gestos estrambólicos, um grito ressoou naturalmente do meu esôfago em direção ao carro desgovernado, nem eu consegui ouvir.

“Tira o carro daí. O que está tentando fazer?”, gritei irascível.

De repente me espantei e reconheci a condutora: era uma amiga de infância, a mesma que me ofereceu abrigo. Sua aparência denotava desespero, ela apontava na minha direção mais além, sem conseguir manter-se calma. Quando virei na direção referenciada, percebi um homem exaltado gritando o nome de um dos nossos vizinhos, com uma arma de fogo levantada para cima e nos olhando de forma ameaçadora, como esperando respostas.

Num átimo, pensei “maldito decreto”. Percebemos a presença dele ao mesmo tempo e corremos na mesma direção; aquela oposta ao rapaz. A sensação de morte iminente me corrói, sinto-me flutuar. Nesse momento, atravessou em meu espírito uma necessidade gigantesca de uma força que eu não tinha. Assaltou-me um pensamento, daqueles que ferem a moral do ser humano. Era um prenúncio: ela caiu.

Despersonalizei a dois metros atrás, já não estava naquele lugar e tempo; habitava dentro de mim, enquanto meu corpo padecia. Flagrava cogitações do caráter humano, mais especificamente do meu. Que tipo de pessoa eu era? Daria tempo de levantá-la e salvar a nós duas, ou essa tentativa seria em vão? Ou salvá-la ainda que eu não me incluísse em tal decisão? Seria a melhor escolha salvar a mim mesma, se só uma poderia ser salva? Eu era capaz disso? O tipo de pessoa que eu seria ali definiria meu caráter e paz de espírito futuros.

Tudo ocorreu nos primeiros milésimos de segundo. Ao impor tais perguntas, todas ficaram sem respostas; um gesto decidiria meu futuro, como julgaria e veria minha integridade. No mesmo momento que a vi caindo, em um sobressalto, estendi a mão para ela, levantando-a e a impulsionando para frente, acelerando seu passo. Se antes sua situação era estática, agora corria à minha frente enquanto optava por qual caminho seguir; não soubera que qualquer caminho seria seguro, pois a ameaça se dissipou junto da minha súbita atitude, enquanto planava no obscuro da minha alma. Com meu espírito em êxtase, naquele momento eu poderia morrer plenamente.

Caroline Azeredo, 27, é estudante de Psicologia
e Psicanálise. Escreve como via de sublimação,
cria a partir dos seus conflitos

 

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