Somente o tempo vai me revelar quem sou

Somente o tempo vai me revelar quem sou
(Foto: Joana Kosinska/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


Deito para mais uma noite de sono com a cabeça borbulhando sobre alguns bons momentos do dia. Preciso dormir e tenho aproximadamente três horas de sono, já que partiremos cedo a Cascavel para a consulta da mãe, a fim de ouvir do médico qual foi a resposta do corpo dela diante do tratamento ao qual precisou se submeter há alguns meses.

Apesar de estar consciente do quanto as poucas horas de sono que teria pela frente e da importância de otimizá-las, faço meu ritual diário de agradecer e mentalizar meus pedidos. Agradeço a vida e saúde, minha, dos meus familiares, amigos e de todas as pessoas que me cercam. Agradeço o alimento, a roupa, o calçado, o lar que nos protege, que é templo, refúgio e – em tempos pandêmicos – é também esconderijo, além de privilégio.

Apraz-me compreender cada palavra que compõe um texto, confrontar-me com algo que não consigo colocar em palavras e conseguir desbloquear, prefiro escrever nas folhas em branco. Muitas das palavras e passagens que gostaria de organizar e colocar no papel têm rostos. Disperso do ritual pensando no que gostaria de escrever. Volto à infância, ao ambiente em que cresci e nos objetos que – despretensiosamente ou não – estimularam-me a ser quem sou. Dentre esses objetos, a máquina de escrever tem um cantinho especial em minha memória, ela pertencia ao meu pai e seu uso tinha finalidades adultas, sérias e responsáveis, no entanto era um dos objetos com os quais eu e minha irmã mais gostávamos de brincar. Há uma memória em que, por ter encavalado vários mecanismos – tipos – das teclas da máquina, meu pai ficou chateado e, como castigo, recebi seu silêncio, com toda atmosfera ensurdecedora e doída que a ausência de som vinda de quem amamos pode ter. Outros objetos vêm em minha mente, fazendo-me gastar um pouco mais do curto tempo de sono que teria. Os instrumentos musicais: violão, harmônica, pandeiro e a flauta – embora nenhum deles tenha sido o empurrão que precisava para enveredar para os caminhos da Música. A flauta! Na aula anterior o Lipe começou a aula com a flauta-doce na mão, preciso pensar em algo a partir disso para o nosso próximo encontro. Estamos na transição do período junino para o julino. Parece-me importante, enquanto professora também de crianças, não deixar determinadas datas passarem em branco em meio a esse período de distanciamento social em função da pandemia. Reviro repertórios na memória, solfejo e me pego marcando o andamento da música que poderia usar na próxima aula e lembro que interrompi meu ritual com todas essas ideias. Retorno. Retorno ao ponto que não poderia deixar de mentalizar antes de dormir: a cura. Que todo o processo pelo qual minha mãe passou nos traga, ao fim da consulta do dia seguinte, uma notícia positiva em meio ao turbilhão que estamos vivendo nas mais diferentes esferas da vida.

Há alguns meses a foto de um manuscrito meu foi utilizada como registro da passagem de mais uma leitura do Leia Mulheres Francisco Beltrão. O registro continha algumas anotações acerca do livro O corpo em que nasci, da mexicana Guadalupe Nettel, um livro autobiográfico que girava em torno de seu problema de visão e todo o processo pessoal relacionado ao mesmo. A premissa do livro instigou, mas terminei achando que a leitura não havia me alcançado, embora consciente de que parte da impressão que tive do livro dizia respeito a minha própria expectativa. E poderia me perder mais uma vez escrevendo sobre o livro quando, na realidade, pensei em escrever sobre o fato de a minha irmã frequentemente me lembrar e reforçar o quanto sempre gostei de escrever e sobre meu apreço pela palavra, além de uma nota sobre quando a foto do manuscrito foi postada e uma amiga da época do terceirão no Mário de Andrade também me trazer à consciência o quanto tudo isso sempre fez parte de mim. O fato é que tenho observado que, diante do período que estamos vivendo, escrever é uma forma de transformar meus dias que também têm seus altos e baixos devido aos inúmeros noticiários que nos falam sobre mortes, pandemia, descaso, necropolítica e tudo que temos acompanhado.

Este texto é sobre processos. No último dia 23 de junho ganhei do namorado um dos presentes mais lindos que alguém poderia me dar: uma caixa feita a mão – por ele -, com puxador floral de porcelana, para guardar parte dos meus materiais de papelaria – fascínio que me acompanha desde a infância – e meus manuscritos. O primeiro contato com a caixa já me encheu os olhos e aqueceu o coração, no entanto ela não estava acabada, pois segundo ele a escolha das cores para essa caixa dependeriam de mim. Observei-a por algum tempo e o detalhe lindo do puxador logo me trouxe a cor que gostaria de ver nela: um verde Almodóvar, Frida Kahlo – “cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores” – e assim foi. Em um processo que ainda não se finalizou e que demanda equilibrar o tempo dos materiais e a nossa ansiedade, a caixa chegou em um resultado que, aos meus olhos, não pode ser visto desprovido de afeto.

Das partes lindas desse processo, ouvi o reconhecimento pela contribuição que eu e a mãe dele – o namorado, minha sogra – tivemos para o resultado final e isso me fez refletir sobre tanta coisa, dentre elas sobre como, apesar de ainda termos um longo caminho pela frente, demos alguns passos em direção à valorização do trabalho, conhecimento e ideias da mulher. Penso sobre Marie Curie e sobre suas parcerias com o companheiro. Penso.

Sobre a potência presente na incompletude. Que a gente acredite nos processos e em cada pequeno gesto – como reconhecer as atitudes bacanas do companheiro – em direção às transformações que queremos para o mundo e para nossas vidas. Porque, como escreveu Leminski, acolher e confiar em nossos processos nos levará além.

Juliane Lino, 34, é educadora musical em Francisco Beltrão, PR.
No período forçado de quarentena tem resgatado com um tanto
mais de disciplina um hábito da infância e adolescência,
encontrando na escrita um caminho para transformar seus dias e
das pessoas ao seu redor

 

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