Sinceridade literária – Sobre “Antiterapias” de Jacques Fux

Sinceridade literária – Sobre “Antiterapias” de Jacques Fux
Jacques Fux

“Que a literatura e a poesia alcancem o sublime silêncio. E que os sonhos premonitórios, psicanalíticos ou bíblicos, tornem-se o belo silêncio da literatura.”

Jacques Fux

Antiterapias é o romance de estreia de  Jacques Fux, ganhador do Prêmio São Paulo de 2013.

Falar de Antiterapias, me obriga a dizer algumas coisas sobre Jacques Fux, matemático e doutor em teoria literária, especialista em Georges Perec e aquele grupo de escritores, o Oulipo, de também de Jorge L. Borges e outras coisas mais. Não sei muito mais sobre ele, além de que conhece Henry Darger (pensei que fosse só eu, e dizer isso já é – quem vier a ler o livro saberá – algo altamente “fuxiano”). Posso dizer que conheci Jacques Fux na Fliaraxá deste ano e que simpatizei com ele. Então, penso que estou escrevendo sobre o meu novo amigo e sobre o livro do meu amigo. Contudo, é de bom tom que críticos ocultem antipatias ou simpatias pessoais com o autor ou editor quando escrevem sobre um livro, mas como sou apenas uma comentarista – praticamente esportiva – de literatura, faço o que quero. Talvez eu perca o meu amigo recente depois dessa resenha, por sorte já li o livro e a leitura a gente nunca perde. Tomara que eu não perca o meu leitor agora. Toda escrita é performativa, sabe lá o que ela pode causar quando se torna leitura no lugar ocupado pelo outro.

Não declarar, no entanto, que li Antiterapias porque conheci o autor e fiquei curiosa, seria desonesto com uma das características do livro: a sinceridade. Ler Antiterapias causa efeitos: a vontade de sinceridade. A sinceridade se diz de diversos modos, também a sinceridade literária. Não sei se Jacques Fux é sincero, conheço-o pouco (a amizade é sempre uma aposta na sinceridade), mas seu livro é altamente sincero. Tão sincero que provocou esta leitura sincera (e, talvez por isso, eu me sinta meio Jacques Fux escrevendo o que estou a escrever). Eu não escreveria dessa forma sincera (e aqui tenho que ser mais que sincera, literariamente sincera) sobre Antiterapias, se não reconhecesse nele esta característica muito particular da sinceridade que me serve de mote para o atual comentário (enquanto, justamente, ela ultrapassa o meu mero gosto. A esta altura da vida, depois de muito analisar, não gosto mais de nada – porque gostar não é uma categoria válida, embora eu tenha gostado de Antiterapias. Gostar ou não gostar, não é, a rigor, nada que valha a pena dizer, mas sim, contradizer. Há nesse ato de classificação uma incômoda autoclassificação: “diz-me do que gostas e dir-te-ei quem és”, lei que seria bom combater. Implosão do sentido do “gostar”, eis o projeto.)

Antiterapias tem, portanto, várias particularidades, uma delas é ser feito dessa matéria da sinceridade literária que se torna ficção. Não há, a meu ver, outro caminho para a literatura. Daí Flaubert dizer que “Madame Bovary sou eu”. Ele não era dona Emma e, ao mesmo tempo, era. Assim como Melville era Ishmael, Machado era Bráz Cubas, Clarice era G.H. Jacques Fux, meio Proust, meio Virgílio, sou eu. Assim, em itálico, pra marcar a diferença.

A especulação em torno do que vem sendo chamado de auto-ficção tem algo de redundante. Quem escreve, escreve a si mesmo. Quem escreve, escreve em si mesmo (?). Em certa medida, a vida é ficção. A ficção, para quem escreve, é a vida. Auto-ficção seria uma parte de toda ficção porque há sempre um elemento autobiográfico em todo livro, por mais “inventado” que ele possa ser. Na forma como vem sendo escrita hoje, auto-ficção é o uso da própria vida no que ela tem de fantasmagórico, teatral: verdadeiro e falso ao mesmo tempo.

Não faço, mas gosto (frase meio vazia e totalmente auto-ficcional).

Auto-ficção é a classificação na qual é fácil enquadrar Antiterapias, quando associamos os acontecimentos internos do livro com as informações sobre Fux constantes na orelha, por exemplo. O próprio Fux disse algo nesse sentido quando o ouvimos na Fliaraxá. Contudo, tirando as notícias sobre a vida de Fux, o fato de que seja judeu (será mesmo, ou estaria inventando?), de que tenha estudado matemática e feito doutorado na França e no Brasil, de que, no livro, haja várias coisas que pareçam ter mesmo acontecido com ele, é preciso lembrar que a literatura não está nos fatos, nem na descrição, nem na reflexão, nem na ação, nem nos personagens, nem mesmo no autor, muito menos em sua vida. A literatura, que é o que justifica um livro de literatura, está no narrador, no ato do contar propriamente dito. Tirando tudo, se ainda persistir um narrador, é ele que surge no texto, como aquele que, além do autor, além do escritor, é realmente quem escreve. Então, a arte está ali e pouco importa se a história é simples ou complexa, longa ou curta, se a linguagem é culta ou prosaica, se é poética, hermética, patética, trágica, cômica.

Tendo isso em vista, o narrador em Antiterapias comove por sua verossimilhança. Ele parece mesmo real, assim como Emma Bovary era, em certo sentido, real. Sua simplicidade é uma espécie de perplexidade – exposta ironicamente. Uma ironia que não é alegre. No entanto, há algo de sorridente no modo como a história é contada. Um sorriso de canto se esconde no texto. E tem aquele fato meio premonitório que faz desse risinho algo muito, mas muito mais engraçado: na página 52 ele fala de “o Prêmio”. Ele de fato, ganhou “o prêmio”, algo tão esperado por sua família…

A outra característica particular que não se pode deixar de mencionar é a lógica interna do livro. Antiterapias segue uma sequência, e o sumário pode ser lido como roteiro indicativo da viagem autobiográfica do narrador. Do primeiro capítulo chamado “Astrofísico – ou aquele que sonha as estrelas” ao último “Autor – ou aquele que plagia a outra dor”, lemos a história de alguém que, sem autodenominar-se, medita acerca de sua própria vida. Espantosa a arte da memória na narrativa (que memória…). E como pensa. Em  Antiterapias, literatura é arte da  reflexão (penso, por exemplo, no capítulo “Antropólogo – ou aquele que perscruta o ser”, no qual há uma meditação maravilhosa – e crítica – sobre as rezas judaicas).

Então, na verdade, o fato de que o que ele escreva seja verdade ou não seja verdade, pouco importa. É verdade e não é verdade. Mas não por ser mentira. E sim por ser ficção.

Há outra coisa que me parece mais importante. O que ele diz, embora possa interessar a quem um dia pensou em ser astrofísico ou antropólogo, mas também passou em algum momento, como vidente ou falsário, filósofo ou charlatão, coloca os leitores no melhor lugar possível quando se trata de leitura: ler é a passagem à uma descoberta inaudita: a não identidade.

Todo livro produz 2 tipos de leitores. Primeiro, a leitura por identificação que é, em qualquer caso, confirmação, repetição, ou aval do que se leu – ou do que se pensa que leu. Muita gente gosta de um livro porque “esse livro fala de mim”. Há no tipo de leitura por identificação um processo de autodescoberta. Só que ela é falsa. O que está em jogo neste caso é sempre um encontro com o mesmo. Segundo, há a leitura por estranhamento, onde as coisas realmente se revelam: quando não nos identificamos em nada com o livro e, mesmo assim, ele nos instiga à leitura. Auto-ficção, ou o livro que não fala de mim. Isso é o desafio instigante. Quando sabemos que “esse livro não fala de mim”, não tem nada a ver comigo e, mesmo assim, nos pomos a lê-lo. Nessas horas é que penso que, por mais afinidades que eu possa ter com o meu amigo Fux, o livro de Fux não tem nada a ver comigo. Por isso mesmo, valeu a leitura.

(Fux dirá que estou mentindo. Nossas literaturas até que se comunicam, é verdade, mas a graça está em reinventar de algum modo o paradoxo de Epimênides de que ele tanto gosta e eu também.)

Ainda no rol das particularidade, acho que Antiterapias é o livro com mais epígrafes que li na vida (De Proust a Primo Levi, De Borges a Perec). Sonhei que li um livro só de epígrafes, Fux começou a escrevê-lo. As epígrafes são sinais para a viagem, bússola que se olha do começo ao fim.  Acontece que, no fim, além da bússola, há um porto seguro. Um glossário – que só descobri quando olhei ao final procurando justamente por um glossário – é uma das particularidades agradáveis de Antiterapias. Os termos judaicos são meio que incompreensíveis.

Até o glossário, o livro tinha se tornado um “dibouk”. Particularidade da leitura… Não é verdade que me livrei do dibouk que esse livro foi nesses dias, mas encontrei alguma paz no silêncio que sua leitura conseguiu provocar. Essa parte é a melhor dos livros e ela nunca vai aparecer nas resenhas, críticas, e análises. Apesar das brincadeiras, ironias, jogos, tramas, estratégias narrativas, é certo que Fux escreve por isso, pra nos dar esse silêncio de presente.

O leitor saberá guardá-lo nesse lugar da alma onde moram as melhores descobertas.

(1) Comentário

  1. Marcia Tiburi, “encontrei (nesta leitura da sua critica-não-critica exato isso – conforme você explica e eu venho sentindo por alguns autores) … alguma paz no silêncio que sua leitura conseguiu provocar. Essa parte é a melhor dos livros e ela nunca vai aparecer nas resenhas, críticas, e análises”….

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