Rita Isadora Pessoa e uma pequena fábrica de ruínas

Rita Isadora Pessoa e uma pequena fábrica de ruínas
A poeta Rita Isadora Pessoa, que lança "Madame Leviatã" pela Edições Macondo (Foto: Divulgação)

 

 

“o grande Leviatã é a única criatura
do mundo que deverá permanecer
para sempre inexprimível”
Herman Melville, Moby Dick, cap. 55

Paulo Leminski afirma num artigo intitulado “Sem eu, sem tu, sem ele” que um texto literário é objeto sem autor, para leitor nenhum, não se refere a nada e, principalmente, que existe alguma coisa na palavra que não é matéria. A ideia: modular o gesto automático de que um indivíduo é capaz de fazer literatura; para ele esse fazer só é possível com a humanidade, ou seja, com uma comunidade de acrobatas. Daí, repare-se, numa abrangência, quando alguém ainda pede uma lista “para beirar a bobagem” (mesmo num ano com mais de 170 mil mortos no país, até este momento, por uma pandemia insólita e negligência genocida) e apenas celebrar o comando hierárquico dos cinco ou dez “melhores do ano”: livros, autores, celebração. Ou seja, simulacro e simulação, sistema de regras bancárias, restrições e controle. Daí que Leminski empenhe-se em rasurar a paisagem: “Hoje, não há mais alienação, já que tudo é alienado, a alienação tomou conta de tudo” e “Neste mundo sordidamente mercantil que nos foi dado viver, temos um pavor instintivo de todas as coisas intransitivas.”

Esta rarefação de poder sobre a qual também assenta a literatura e o poema, tal e qual, só se engendraria ainda como um corpo que se debate diante do impossível até a ruína do real se numa fragmentação múltipla das coisas e das imagens deixadas em estado de penúria e putrefação pela história, sem compromisso ou dilação de origem. Walter Benjamin, ao inscrever assim a luta da vida com as imagens, talvez projetasse aí algum futuro mais fabuloso entre pó e folhas impensadas e alguma intransitividade.

Leia-se o caso do recente livro de poemas de Rita Isadora Pessoa, Madame Leviatã (Edições Macondo), que inicia exatamente com a armadilha de um lugar oscilante e uma disposição plural: “na nossa pequena fábrica de ruínas”. Em seguida, pode-se começar a entender a divisão do livro em duas partes que repartem o jogo: Sobre a manufatura de mitos autodestrutíveis e Em caso de emergência, estes demônios serão despejados nos jardins do palácio. Importante lembrar exatamente frente a essa divisão que, antes, Rita fez tese de doutoramento acerca de Moby Dick, de Herman Melville, um leviatã infinito que o tempo inteiro atravessa a vertigem de uma “monomania” definitiva e múltipla, de uma “loucura felina e astuta” e de uma “coragem para sentir medo”.

Uma questão que o livro impõe, lentamente, a cada linha, seria pensar em qual ponto estreito o trabalho de Rita com o poema se vincula também ao pensamento deliberado que leva o Pequod, o barco de Ahab, a um jogo entre o humano e a animalidade. Recuperar, via Ishmael, o narrador imaginado por Melville, o traçado e a inferência da aparição do monstro marinho que vem dos textos bíblicos, o Livro de Jó e o Livro de Isaías, como sombra materializada e demoníaca, “longa, forte, tortuosa, veloz”, em uma aventura de escrita com imaginação imensa e rara. Aventura que já está em seu primeiro livro, A vida nos vulcões (Oito e meio), quando opta por montar uma série de explosões figuradas do corpo, da terra e do fogo do corpo, como se um só plano de astros, ao mesmo tempo, e sem especulação metafísica. As pistas neste Madame Leviatã são inúmeras, coisas como “meus minidemônios meridianos / brotando barbatanas brânquias / braços // enquanto fraturo / ossos imaginários / para acolher / em silêncio / uma nova ordem // de feras” ou “desejo insincero de ser outra: / pele e vísceras singradas,” e, ainda, “– a imagem que tem vem / é de um leviatã composto de destroços      e vento / que se move / de um ponto        a outro” ou “que animal é este?”

 

A tarefa a que Rita se impõe,
quase sempre, dobra-se sobre
uma tentativa de escrever de pé,
praticamente perseguindo a
síntese inventiva do irrequieto e
ambíguo Drummond, “melancólico,
e vertical”, sem cair de joelhos à
espera de que o poema pacientemente
explique ou denote qualquer coisa.

 

 

O que se tem é a sugestão de uma temporalidade sem esperança alguma, quando nada pode apresentar salvação e quando todo espaço se comprime num universo sem freios do corpo desejante: “queria escrever um poema sensorial, um sobrevoo rasante, ébrio, erótico, / com palavras que pudessem salvar algo disto aqui, mas o poema ele fracassa”. Não como tema, mas como um achaque, um risinho sempre à sério, se impõe a “escrever sobre o amor”, como uma “madama”, senhora de tudo e de nada, ambivalentemente, ser e não-ser, sem perder de vista que madama é também um pequeno monte de terra que sobra de uma escavação, arqueologia errante, ou, numa cisma, é uma testemunha desamparada e firme. Ela anota: “mas escrever sobre o amor / é como fundar um país íntimo / deslocado            à parte / de um domínio continental / operante // escrever sobre o amor / é como violentar um poema / no seu cerne / de crisálida / quase sem pele / ainda sem asas”.

A troca de pele, humana-animal-flor, lida como uma “catástrofe natural”, e recuperada nessas imagens destoantes, sem parada nem fixidez, sem lamúria mínima ou pranto, mas muito mais com a força daquela que imagina perceber que o enfrentamento da vida e do mundo se faz “a cada acidente epidérmico”. E aí, com alguma argúcia, se pode ler a distância incrível que poetas como Rita têm de uma maioria esmagadora e espalhada numa troca falseada através da revelia da fé [ideal e glória], e isto porque não atribui seu trabalho nem a seu trabalho uma retenção religiosa, mas o faz deliberadamente percorrer uma ansiedade de futuro como releitura crítica, reler a crise. A imagem do Leviatã no clássico de Hobbes, este que pensa a partir do paradoxo de Tácito, por exemplo, diz o ponto em que a religião, fruto do medo e da imaginação leniente, funciona como um pacto conformado e reverente numa sujeição à sobrevida. No livro de Rita tem-se a presença de um sem número de suas leituras, devidamente anotadas; o convite final à destruição do livro, sem nenhuma ironia, em “caso de eventos extraordinários”; a liberdade que vem em todo o livro e que se figura em pequenos acontecimentos como o de uma “geometria incansável / da foda / do limite / das cordas”, “é que eu tenho uma coisa com gatos” ou “me deito quieta nua / sobre a impenetrabilidade fumegante / deste chão de pedra” etc. são as impertinências de quem se move numa reserva expandida para escrever simplesmente UMA outra Leviatã, quase a mesma, mas diferida, diante da “nova edição unabridged do livro de jó” que lhe convida, alegre e ironicamente, todos os dias, na “consistência / do relacionamento lésbico”, a dançar com a morte.

O ponto de insurgência do livro de Rita, este Madame Leviatã, pode se demorar [mora, morada] na intransitiva e dialética proposição de Leminski: “não existe isso que se chama ‘escrever bem’. Existe é pensar bem. Escrever é pensar. Quem pensa mal, escreve mal. Não há habilidade retórica que consiga disfarçar um pensamento fraco ou medíocre.” E é assim que o trabalho impensado, forte, bonito, porque de natureza frágil, deteriorada, precária, de Rita Isadora Pessoa, é capaz de trazer à lembrança uma lista instável e minimamente abrangente, sem hierarquia sórdida, aqui e acolá, “não fosse tanto e era quase”, de trabalhos que não renunciam à liberdade do pensamento e do corpo como uma aventura do poema que ainda pode ler, de algum modo, a vulnerabilidade da política, ou seja, pensar com o poema mesmo que ele não se inscreva, que ele fracasse. Escrever COM uma comunidade diferida e imaterial de acrobatas: Adriana Gama de Araújo, Aline Prucoli, Ana Carolina Assis, Ana Estaregui, Annita Costa Malufe, Bruna Carolina Carvalho, Camila Assad, Carolina Machado, Chantal Castelli, Cláudia Sehbe, Estela Rosa, Katia Maciel, Joice Nunes, Júlia de Sousa, Júlia Studart, Juliana Krapp, Laís Romero, Lorena Martins, Marília Garcia, Mayra Redin, Micheliny Verunschk, Natália Agra, Prisca Agustoni, Raisa Christina, Renata Flávia, Sara Síntique, Vanessa C. Rodrigues, Veronica Stigger etc. Essas, e algumas outras, sabe-se lá, que também podem ser lidas e imaginadas como madames leviatã, tal como diz Rita: “criaturinhas aladas / que voam suicidas / em direção à luz”.

Manoel Ricardo de Lima é professor do PPGMS e da Escola de Letras, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia Aérea [7Letras, 2014], Jogo de Varetas [7Letras, 2012], As mãos [7Letras, 2003/2012], Maria quer o mundo [Edições SM, 2015] e O método da exaustão [Garupa Edições, 2020].

Rita Isadora Pessoa, Edições Macondo
84 páginas – R$38

 

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