De restos e de desejos

De restos e de desejos

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de maio de 2021 é “desejo”


Desejar é saber que a vida nunca está pronta… Constatação das mais óbvias essa, não? Mas nela reside a ideia de movimentos, de restos, de buscas… de porvir.

Porque a vida acontece a todo instante e insiste em sempre deixar algo para depois.
Restar um resto, uma réstia de desejo para continuar… Mesmo que as obsessões queiram dar conta de tudo para que não fiquem restos, eles persistem e insistem em manter algo que alimente o viver, o desejo, dizem, da pequenez humana diante da vida.

Mas o fato é que somos feitos de desejos com seus restos.

Restos do que ficou nas entrelinhas…
Restos de trabalho… restos de olhares, de sons, de medos, de escutas, de memórias, de cheiros, de sabores, de histórias do outro… que também são um pouco nossas…

O desejo nunca está satisfeito (que bom!). Ele é travesso, é exigente… vai deixando em suas insatisfações suas centelhas de restos…
Desejar é manter o desejo insatisfeito.
Um pouco louco isso, não? Lacan afirmou que “o desejo é o que atormenta o homem”.

A vida se dá em operações lógicas, que cortam, recortam, contornam desejos, fugazes como o próprio movimento da vida, que nos “obriga” a seguir com os desejos e com os restos.

Pois a vida (ah, a vida!) não se importa com o que desejamos, ela simplesmente acontece.
Por isso, cuidemos de nossos desejos e restos!

A intermitência da vida acontece nas pequenas e parciais mortes/realizações de desejos que deixam uns restinhos, pedacinhos de desejos pelo caminho para se manterem vivos… Um tracejado feito pelo caminhante.

O desejo é especialista em deixar seus restos, seus rastros de insatisfações. Só para continuarmos… só para ele não ser esquecido, ou melhor, para ser lembrado.

A metonímia do desejo consiste em não matá-lo, mas mantê-lo. Realizar/satisfazer o desejo é deixar algo em suspenso, pelo menos uma pontinha de insatisfação. É manter o desejo de desejos para que algo dialeticamente se mantenha, persista e insista na vida.

Quem aí já dormiu com a vida encerrada, concluída, plena?

Saber que falta algo para o outro dia nos faz acordar e tentar fazer dar certo, ou mesmo errado, só para continuar a desejar e a viver…

 

Luzia Nolêto, 46, é psicanalista e supervisora clínica.
Mora em Teresina, PI.

 

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