Reforma administrativa: Lobby 7 x 1 Jornalismo

Reforma administrativa: Lobby 7 x 1 Jornalismo
Edição do JN da última segunda (10) exibiu 'reportagem' enviesada sobre a reforma administrativa (Foto: Reprodução/Globoplay)

 

 

Para os jornais da Globo começou uma nova temporada do seriado Minha Política Pública Preferida. Claro, o nome oficial é Reforma Administrativa, mas o que se faz aqui é defender uma política pública que já se decidiu que é boa, não mais se examina ou discute, apenas se apresenta e reitera. O curioso é que a matéria-encomenda da semana vem inteirinha do Instituto Millenium, um think tank, quer dizer, uma instituição financiada por privados para fazer advocacia de interesses por meio de estudos, seminários, notas técnicas e relatórios. Os think tanks são uma espécie de ONG de gabinete que tentam influenciar ideias e agendas.

Acontece que quando se trata da apologia da política pública preferida do patrão e dos anunciantes, claro, adeus jornalismo, objetividade, diversidade de fontes, análises complexas, apuração isenta, responsabilidade. A esse ponto vale propaganda, parcialidade, enganos e manipulação.

Os “dados” apresentados são só do Instituto Millenium. As fontes, que dão aquelas sonoras para ilustrar as matérias, são também desse Instituto, do seu networking, amiguinhos que compartilham o mesmo ponto de vista. Até o enquadramento, quer dizer, o ângulo de abordagem por meio do qual o problema é tratado, foi entregue pelo think tank e adotado pelo jornalismo.

O enquadramento, aliás, é uma grotesca manipulação: “Governo gastou três vezes mais com salários de servidores do que com Saúde, diz estudo”. Mas, pergunte-se, por que a comparação sem sentido entre duas grandezas como “servidores” e “serviços públicos” para mostrar que se gasta mais com servidores do que com um tipo de serviço público? Obviamente, como o Estado presta um número muito grande de serviços públicos, compara-se o custo dos servidores com o custo de um dos serviços públicos, a saúde, um tema particularmente agudo na pandemia, simplesmente para manipular a opinião pública. Existe um universo e um governo que gaste mais com a rubrica “saúde” do que com todo o conjunto de servidores e serviços que o Estado presta ao cidadão? Me parece improvável. Além disso, é possível a entrega de serviços públicos sem servidores? Servidores da área de educação não fazem parte da planilha de custos dos serviços educacionais? E os da Saúde?

Além disso, para escândalo do próprio Jornal Nacional, não estavam faltando pessoas na Previdência um dia desses para analisar demandas e entregar os serviços públicos que aquele órgão de Estado presta ao cidadão? Não é o mesmo telejornal que repete todos os dias que faltam fiscais ao Ibama, auditores à Receita, médicos nos postos de saúde, defensores públicos na Justiça, policiais nas ruas e professores nas escolas? Afinal, faltam ou sobram? O cidadão brasileiro precisa saber que não dá para reclamar da falta de serviços e servidores públicos, portanto, da falta de Estado, e ao mesmo reclamar que há muito Estado e servidores públicos demais. É papel do jornalismo ser honesto quanto a esse dilema e apresentar de maneira clara e íntegra o que está em jogo, até para o cidadão decidir por si mesmo se ele quer mais ou menos Estado. Não está sendo. Quando se trata do tema, o jornalismo dos grandes jornais de referência escolhe um ponto de vista e faz diuturnamente propaganda dele, inclusive sem se perguntar se esse ponto de vista interessa ao cidadão médio brasileiro, que é pobre.

Por fim, quando se troca o jornalismo pelo lobby de interesses, a complexidade é a primeira coisa a desaparecer, logo depois da honestidade. Ninguém explica a você, leitor, as razões pelas quais eles defendem o dogma de que o Estado brasileiro deve ainda ser menor do que é. Deve mesmo? Como pode ser menor se nas periferias das cidades e nos grotões ele quase já não existe e todo o dia o telejornal se queixa disso? Se você mora em um bairro pobre sabe que o Estado não lhe entrega segurança pública, serviços de saúde, assistência social, cultura, nem mesmo educação. É do seu interesse ter ainda menos do que tem? Qual o custo social, sobretudo para um país em que a maior parte da população é pobre, se o Estado diminuir mais ainda?

Sim, porque diminuir o número de servidores significa diminuir serviços públicos. Isso é desejável em um Estado já com déficit em prestação ao cidadão? Já imaginou a tragédia que seria para o Brasil atravessar essa pandemia sem o SUS, que vem sendo subfinanciado e cujo pessoal não é reposto há alguns anos? A você, leitor, interessa o Brasil com ainda menos SUS?

Além disso, diminuir salário de servidores, o que para tanta gente parece a solução mágica, tem como consequência um recrutamento ainda pior. Muitos não notam, mas essa fórmula já é aplicada em algumas carreiras de Estado com consequências desastrosas. Lembram quando o professor da escola pública era um sujeito com salário compatível com a classe média e a escola pública era qualificada? É esse o modelo que se quer generalizar ou deveria ser o contrário, remunerar com justiça para se recrutar melhor nas carreiras degradadas por essa mentalidade que servidores públicos ganham mais do que merecem?

O Jornal Nacional, em particular, e o jornalismo da Globo, em geral, têm isso. São capazes de fazer grande jornalismo, mas só quando os seus editores permitem e sobre certos temas. Quando, entretanto, se trata de outros temas, viram basicamente meios de promoção de determinados pontos de vista, hiper parciais, sem problema algum com o uso de informação inexata, dados enviesados e aquela seleção malandrinha dos especialistas que darão as sonoras para parecer que não é um editorial, mas uma matéria factual. Um passinho mais para o lado e é fake news.

Parabéns ao board do Instituto Millenium, que deve ter feito reservas em algum restaurante grã-fino para a festa da firma depois que conquistaram as redações dos jornalões. Deve ser uma delícia ser think tank e lobista de interesses particulares com todo o jornalismo da Globo à disposição. Lobismo não, “parceria”. Quando o tema é serviço público e diminuição do Estado tem sido assim: Lobby 7 x 1 Jornalismo.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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