“A quem interessa a liberdade de mentir?” As novas diretrizes da Meta nas relações internacionais e na comunidade LGBTQIA+

“A quem interessa a liberdade de mentir?” As novas diretrizes da Meta nas relações internacionais e na comunidade LGBTQIA+

 

No último dia 7 de janeiro, terça-feira, o blog da Meta, big tech norte-americana de Mark Zuckerberg, publicou uma matéria assinada pelo Diretor de Assuntos Globais da companhia, Joel Kaplan, anunciando mudanças nas diretrizes de moderação de conteúdo nas plataformas controladas pela empresa, dona do Instagram, Facebook e Whatsapp.

Dentre os principais pontos de mudança destacados na postagem estão o encerramento da parceria da empresa com agências de checagem de fatos, que auxiliam na moderação de postagens; a adoção de um sistema de “notas da comunidade”, já adotado pelo X de Elon Musk (antigo Twitter), em que os próprios usuários poderão adicionar correções a posts tendenciosos; e o deslocamento da equipe de “confiança, segurança e moderação de conteúdo” da empresa da Califórnia para o Texas.

No vídeo anexo à postagem, o próprio CEO da Meta, Mark Zuckerberg dá o contexto da decisão: “nos últimos anos, governos e empresas de mídia tradicional têm pressionado cada vez mais pela censura. Muito disso é claramente político […] As últimas eleições parecem ter sido um ponto de inflexão cultural em direção a priorizar novamente a liberdade de expressão, portanto, estamos voltando às nossas origens, simplificando nossas políticas e restaurando a liberdade de expressão em nossas plataformas”, declara, se referindo às eleições presidenciais americanas do ano passado, que deram vitória ao candidato republicano Donald Trump.

A simplificação das políticas da empresa à qual Zuckerberg se refere aparece mais adiante quando ele diz que “nós vamos nos livrar de um monte de restrições em tópicos como gênero e imigração que estão simplesmente fora do contexto do discurso dominante. O que começou como um movimento pela inclusão tem sido usado cada vez mais para silenciar opiniões e pessoas com ideias diferentes e isso foi longe demais”.

Os primeiros reflexos do pronunciamento do CEO da Meta –  que é considerado pela revista norte-americana Forbes como a 3ª pessoa mais rica do mundo, com um patrimônio avaliado em 211 bilhões de dólares – vieram através da atualização da política para discursos de ódio nos Estados Unidos e no Reino Unido. No novo texto divulgado nessa terça-feira, dia 7, a empresa declara: “Nós permitimos conteúdo que defenda limitações de gênero em empregos militares, policiais e de ensino” e ainda “nós permitimos acusações de doença mental ou anormalidade baseada em gênero ou orientação sexual dado o discurso político e religioso sobre transgenerismo e homossexualidade e o uso comum e não sério de palavras como ‘esquisito’ (weird).”

Por mais que as novas políticas ainda não tenham sido adotadas pela Meta no Brasil, a ofensiva contra grupos LGBTQIA+ encontrou resistência por meio de organizações e parlamentares em solo nacional. Por meio de seus canais oficiais, a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) anunciou na quarta-feira, 8, que protocolou no ministério público uma representação contra a empresa pedindo providências do Estado Brasileiro. A organização relembrou uma vitória anterior, quando o MPF obrigou o X de Elon Musk a restabelecer medidas de proteção à comunidade trans no Brasil.

Seguindo os passos de Elon Musk, Mark Zuckerberg afirma: “nós iremos trabalhar junto ao presidente Trump para pressionar governos ao redor do mundo que estão perseguindo empresas americanas.” Para Dan Rodrigues Levy, doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra e professor de direito da Universidade Federal de São Paulo, o alinhamento da Meta com o novo governo Trump dá a tônica dos próximos anos com o novo chefe de Estado no poder, além de atingir diretamente a comunidade LGBTQIA+.

“A permissão de alegar doença mental ou anormalidade baseada em gênero ou orientação sexual viola inúmeras regras, tratados internacionais e leis internas dos países que utilizam essas plataformas”, diz Dan, que avalia a decisão da Meta como “um retrocesso de décadas”.

“De certa forma, isso traz uma possibilidade de cometimento de crimes contra essas comunidades. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a homotransfobia como tipo penal definido na lei do racismo, portanto, como crime, e, em 2023, também reconheceu os atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQIA+ como injúria racial”, diz.

Para Dan, chama atenção no discurso de Zuckerberg a ideia de “resgatar“ a liberdade de expressão “como se a liberdade de expressão tivesse sido já violada”. Ele continua: “isso é só um pretexto para que os discursos da extrema direita não sejam censurados, porque a liberdade de expressão não é uma liberdade de agressão, não é uma liberdade de cometer crimes”.

Citando instrumentos legais brasileiros de combate à LGBT-fobia e à desinformação, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Declaração sobre o Direito das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais e Étnicas, dos quais o Brasil é signatário, Dan afirma não termos, entretanto, ferramentas suficientes de proteção dos direitos LGBTQI+ no Brasil: “depende muito de quem está no poder para fazer cumprir esses mecanismos, pois não há, de fato, uma lei aprovada no Congresso Nacional que diga que homofobia é crime. O que temos é uma interpretação do judiciário dizendo isso, o que é muito frágil.”

Dan também chama a atenção para a influência da decisão sobre a tramitação de projetos de regulamentação das redes sociais no Brasil, como o “PL das Fake News”, que segue parado na Câmara dos Deputados desde 2020. Segundo ele, “com a força das big techs e com o novo governo americano, esses PLs vão ficar de escanteio, porque há uma influência muito grande desse discurso na extrema direita brasileira”.

Para o jornalista, escritor e correspondente internacional Jamil Chade, “ainda é difícil saber os verdadeiros motivos dessa reviravolta. Mas há certamente um desejo de estar ao lado do poder, e não contra ele”, se referindo à aproximação da Meta a Trump.

A reviravolta à qual ele se refere fica ainda mais evidente ao lembrar da declaração que o republicano fez em seu livro intitulado Save America, no qual Trump declara que Mark Zuckerberg enfrentaria “prisão perpétua” caso continuasse a minar seus apoiadores nas redes da Meta.

Para Jamil, que classifica o desafio como global, “A comunicação é poder. E Trump sabe disso”. E continua: “Todas as gerações têm seu dilema. O nosso é esse: como fortalecer a democracia diante das novas tecnologias? Quem as controla tem a influência sobre corações e mentes.”

O jornalista defende que “a decisão da Meta abala não apenas a realidade nos EUA, mas também eleições em todo o mundo, inclusive no Brasil. A festa que o anúncio da Meta gerou entre bolsonaristas é um termômetro de quanto essa ala depende da desinformação em suas campanhas eleitorais. Eles não lutam pela liberdade de expressão. Lutam pelo poder de usar a mentira como um instrumento legítimo de poder.”

“Sempre precisamos nos fazer a seguinte pergunta: a quem interessa a liberdade de mentir? A quem interessa a liberdade de disseminar ódio? A quem interessa a autorização para desinformar?”, questiona Jamil.

O anúncio de Zuckerberg chega ao mundo em uma data simbólica: um dia antes da marca de dois anos dos ataques do 8 de janeiro, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram os prédios do Congresso Nacional e do STF, e um dia após o 6 de janeiro, que marca a invasão do capitólio americano por apoiadores de Trump, em 2021.

O anúncio veio acompanhado de uma declaração que parece ressoar discretamente os eventos do 8 de janeiro. Zuckerberg cita a existência de “tribunais secretos nos países latinoamericanos que podem ordenar empresas a derrubar conteúdos”.

Jamil é enfático na necessidade de rebater esse tipo de alegação: “Não existem tribunais secretos ou de exceção no Brasil. Podemos criticar alguns exageros eventuais de autoridades. Mas confundir isso com uma operação de censura ou com o fim do estado de direito, como querem cravar os membros da extrema direita, é má-fé.” Ele cita também que “nos Estados Unidos existe uma operação orquestrada pela extrema direita global para requalificar o Brasil como uma ditadura. E vão usar justamente a ação do Judiciário contra as redes sociais e contra os golpistas de 8 de Janeiro como instrumentos para justificar uma ofensiva sobre o Brasil.”

“O que existe é uma tentativa de democracias de buscar instrumentos sobre como lidar com essa nova tecnologia que, sem dúvida, está abalando as regras da sociedade, as dinâmicas de poder e a estrutura da disseminação da informação”, esclarece.

Em um contexto mais amplo, Jamil diz que “estamos diante do esboço dos contornos de uma nova era do imperialismo norte-americano. Ela inclui retomar áreas estratégicas no mundo físico – como Panamá e Groenlândia – mas também o absoluto controle sobre o mundo virtual que, hoje, delimita também quem somos, como agimos, como pensamos e nossos destinos”.

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