Quanta justiça é necessária às mulheres negras, às mulheres pobres?

Quanta justiça é necessária às mulheres negras, às mulheres pobres?
(Arte Revista CULT)

 

Na noite de 9 de fevereiro, sexta de carnaval, e na tarde do domingo, 11, mais de trezentas mulheres vestidas de branco saem pelas ruas de São Paulo com suas alfaias, djembês, xequerês, agogôs, pernas de pau, vozes, corpos. O cortejo de carnaval do Bloco Afro Ilú Obá de Min é o ponto alto de um processo de oficinas de percussão para mulheres, que dura cerca de seis meses, e já acontece há treze anos. Em iorubá o nome do bloco significa “mãos femininas que tocam tambor para Xangô”. Fundado pelas dirigentes Beth Beli e Adriana Aragão, o bloco atualmente tem como regente, além de mestra Beth, Mazé Cintra.

Xangô é o orixá da justiça. E quanta justiça é necessária às mulheres, às mulheres negras, às mulheres pobres. Ao assistir ao cortejo do Ilú em anos anteriores, transbordei emocionada pela força de tantas mulheres em harmonia, fazendo vibrar em som e beleza a necessidade de reparação histórica e de justiça social. Invadia-me a certeza de que aquela ocupação das ruas, prática ancestral da população negra mesmo quando o Estado proibia e perseguia a prática do tambor, era o alargamento do fluxo de um rio de resistência que corre desde o tempo de brutal violência do tráfico negreiro, escravidão e abolição (que na prática trouxe poucas mudanças à vida das pessoas). E na metade de 2017 li um parágrafo da mestra Beth, na divulgação de inscrições para participação no carnaval de 2018, que se conectou ao que eu sentia em relação ao Ilú Obá: “As lutas são muitas, mas chegará o tempo da colheita, mesmo que demore mil primaveras, mil verões… Chegará por mãos de outras mulheres tão fortes e persistentes como nós, sedentas por mudanças urgentes em relação à mulher negra nesse país chamado Brasil e no mundo todo!”.

O desejo de fazer parte deste corpo coletivo potente, que crescia na presença de Dalva, amiga que vem de Brasília semanalmente para os ensaios de xequerê, e do pedido de minha filha Cecília, então com 4 anos, para ser parte do Ilú, se conectou à convocatória de mestra Beth, dirigida este ano preferencialmente a mulheres negras. Fiz a inscrição e me comprometi a participar de ensaios todos os sábados, de setembro a novembro; e aos sábados e domingos de dezembro ao carnaval. Como rotina das 14 às 17h, algumas vezes a partir das 10h (abro aqui parênteses para agradecer meu companheiro: sem que ele assumisse integralmente o cuidado de nossos três filhos, eu não poderia participar do grupo).

A disciplina, conectada a um propósito, se travestiu, do aparente peso, em foco e pertencimento. Na escrita da qualificação de doutorado e alguns artigos, durante a preparação de aulas, no cuidado cotidiano da casa e das crianças, meu foco tem sido o Ilú: a possibilidade de dissolução naquele grupo diverso de mulheres, honrando as que vieram antes de mim, saudando meus orixás, demandando a Xangô a necessária justiça.

“Akotirenes: O Yibi das Mulheres Quilombolas” é o tema do carnaval 2018. De suma importância nesses tempos de golpe também na demarcação de terras. “Falar de mulheres quilombolas é falar da valorização das mulheres negras que tanto lutaram e lutam ainda hoje por terras, direitos igualitários, respeito, melhores condições de trabalho e por liberdade de ir e vir sem ser julgada e discriminada diariamente”, explica o texto de mestra Beth.

Diversas pesquisadoras têm se dedicado a compreender a experiência quilombola. Um dos estudos mais importantes foi feito na década de 1980 por Beatriz Nascimento, intelectual, historiadora e militante negra, assassinada ao defender uma amiga da violência de seu companheiro em 1995. No artigo “O conceito de quilombo e a resistência afro-brasileira”, Beatriz caracterizou os quilombos como instituições africanas, de origem angolana.

No período em que portugueses intensificaram o tráfico de pessoas de África para o Brasil, no século 17, se aliaram ao rei do Congo para penetrar o interior africano. A “zona de caça” preferencial, segundo Beatriz, era no sul de Angola. Havia muitos conflitos entre etnias neste período, fosse por aderir ao tráfico português ou por resistência à invasão. Bantos, especificamente do grupo imbangala, também conhecidos como jaga, resistiram por um longo período ao rei do Congo e aos portugueses. Povo nômade, com muitos caçadores treinados e em guerra contínua, criavam kilombos, palavra de muitos sentidos: indivíduos de outros grupos, que se incorporavam à sociedade imbangala; o território ou campo de guerra; a casa sagrada onde aconteciam rituais de iniciação; e também o acampamento de escravos fugitivos. “Observando a inter-relação Brasil-Angola diante do tráfico negreiro, não é difícil estabelecer conexão entre a história dessa prática na África (Angola) e aqui. A dificuldade está em estabelecer linhas de contato direto, como entre a formação de um quilombo aqui e suas origens territoriais e de composição étnica em Angola”, escreveu Beatriz.

Mesmo sem documentação que comprove uma ligação entre o kilombo africano e os quilombos do Brasil colonial, Palmares se estrutura em 1584, auge da resistência jaga. No século seguinte a etnia se aliaria ao esforço negreiro português. Beatriz apresenta outras evidências desta conexão: o chefe africano de Palmares, Ganga Zumba, foi descrito com o cabelo em tranças longas, adornadas por conchas, idêntico ao adorno utilizado pelo rei imbangala, que recebia o título Gaga.

Na documentação oficial portuguesa, a primeira referência ao termo quilombo é de 1559, mas somente em 1740, depois da guerra à República de Palmares, o termo foi definido: “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”.

Segundo Beatriz, no período colonial, os quilombos se caracterizavam pela formação de grandes Estados, sistemas sociais alternativos, como foi Palmares. Já no século 18, há uma proliferação de quilombos que se distanciam do modelo africano; a fuga passa a ser uma instituição decorrente da instabilidade do sistema escravagista, quase como uma brecha esperada. Neste período, e durante o século 19, os grandes quilombos são formados em morros e nas periferias dos centros urbanos. É no final do século 19 que quilombo se torna símbolo de resistência. Resistência à escravidão, e também ao racismo e à desigualdade que perdura depois da abolição.

Como cantam as mulheres do Ilú Obá, na letra de Stela Carmo: “Muito sangue ainda escorre/ isso tudo precisa acabar/ Você não vê porque está dormindo/ não percebe porque tá alienado/ Eu tô de olho aberto/ o quilombo não está no passado”. O silenciamento de nossa história é rompido pelas mãos de mulheres que tocam ao rei Xangô em busca de justiça. E ela virá, mesmo que demore mil primaveras e verões.


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