Porque é urgente dAr A #partidA – por Marlise Matos

Porque é urgente dAr A #partidA – por Marlise Matos

Porque é urgente dAr A #partidA

Marlise Matos (NEPEM/UFMG)[1]

Vivemos hoje, agora, talvez o momento mais grave e desafiador à conquista ainda recente da democracia brasileira. Nosso presidencialismo de coalizão se esfacelou, temos um governo legitimamente eleito que não mais governa, uma Presidenta visivelmente acuada, atacada de e por todos os lados e forças políticas e sociais. Determinados “líderes” partidários no Congresso, muitos envolvidos em listagens intermináveis de falcatruas e mal feitos de toda natureza, protagonizam um neoconservadorismo travestido de religioso, mas infelizmente apenas estão utilizando da (má) fé para ensejar seus golpes e pedaladas constitucionais e regimentais, aqueles que lhes permitam sua (eterna) permanência ou ainda maior ascensão política e controle dos grupos econômicos que os marionetam. Temos ainda uma casta nada republicana, representativa e emblemática de uma forma perigosa de Estado policial/criminal, oriunda da própria Polícia Federal e bem atuante na boca da cena política contemporânea, performatizando o desvelar de um circo dos horrores da corrupção endêmica, enraizada e disseminada da/na sociedade brasileira (e não apenas da política). Há também outra casta do Judiciário, esta historicamente conservadora ao extremo e elitista, que assiste e concorda (pois se omite) com os inúmeros desmandos praticados, reforçando padrões igualmente históricos e enraizados de injustiça.

Temos também uma parte da nossa sociedade acuada e letárgica, por sua vez, deixando no vácuo de seu estarrecido silêncio o ganhar de espaço de todas as péssimas qualidades daquelas vozes soturnas, aquelas que vociferam para os porões dos navios negreiros e a partir das varandas das casas grandes transformadas agora em varandas gourmet (nunca superadas/os no país), aquelas vozes basicamente assentadas nos privilégios da terra e do acúmulo injusto da propriedade privada, vozes ancestralmente racistas, patriarcais, misóginas, lesbohomotransfóbicas. As vozes do ódio que estão tomando conta do Brasil: ódio e menoscabo a tudo que é diferença e que é diferente, daquilo que não é espelho mesquinho dessa face ancorada no elitismo branco, heterossexual, misógino, classista, racista e tudo mais de antidemocrático que os valores enraizados do autoritarismo atávico brasileiro tão ciosamente cultivou ao longo de séculos de anti-democracia.

É preciso também que se diga e que se reconheça que esse tipo de regime atual de afetação odienta é/foi (infelizmente) social e politicamente construído, induzido e estimulado. Entre outras vicissitudes, ele, sem nenhuma dúvida, foi forjado e (re)construído pelos nossos (ainda pouco democráticos) meios de comunicação, que possuem instrumentos muito eficazes para operar nesse campo. E também essas últimas eleições, com a agudização binária das duas candidaturas – PT e PSDB – construíram convergências inauditas entre formatos de expressividade de insatisfações generalizadas que, afinal, seja formal e intencionalmente (ou não), terminaram canalizadas para um ódio petista e/ou a um Partido, o PT, sem precedentes. Qual é o meu problema aqui (para além de tentar entender, compreender o que se passa)?

Se simplesmente mantivermos abertas as comportas desse regime odioso de afetação, independentemente de quem esteja vencendo essa disputa, o que se vai fazer com tanto ódio irruptivo e circulante? Como será possível dar outro destino ao caudaloso rio de forças destrutivas que estão circulando atualmente? Como isso afetará a nossa jovem democracia? Com certeza que corremos o risco da prevalência dessa agressividade destrutiva deflagrada por um gozo do ódio compartilhado e manifesto e flagrado nas práticas de violência e crueldade contra pessoas (não qualquer pessoa, claro) e partidos e, afinal, contra a própria democracia. Elementos da construção subjetiva e da violência inerentes ao ódio estão amalgamados nesse regime atual e também se encontram relacionados aos sentimentos de perda, insatisfação, deslocamento de poder e não realização dos desejos. Aqueles/as que perderam as eleições, perderam as disputas – que efetivamente perdem afinal poder- estão fazendo o quê com o esse caldeirão de ódio? Recalcam simplesmente? Difícil acreditar. E nós? O que estamos fazendo? Assistindo?

O pulsar de mais essa dor (perder…) nos/as sujeitos/as e nos coletivos, de qualquer um dos lados que seja, pode revigorar ainda mais esse desejo de vingança e destruição daquilo ou daquelx a quem se atribui (com ou sem razão) a causa do próprio mal estar, da “sua” perda: a pulsão destruidora voltada para o seu (des)semelhante é, pois, eminente. As muitas formas desse regime de discriminação odiosa e preconceituosa já se fazem livres e autorizadamente circulantes no país e refletem um exercício tosco de gozo sobre o ódio, esse agora liberto, em livre fluxo, o que pode resultar socialmente numa multidão de sujeitos/as a agir de forma extremada e correndo o risco, sim o risco, do exercício do gozo perverso da aniquilação do Outro.

Me inquieta e preocupa imensamente tal exercício do ódio como um sistema compensatório da tensão que já vem (naturalmente) carregada daquelas experiências primordiais de frustração que os/as sujeitos/as não conseguem ainda elaborar por outra via. A imagem do definitivamente alçado à categoria dx dessemelhantx, comunicacional e espetacularmente construído para receber o ódio (a proposta de redução da maioridade penal como exemplo) do que agora é “de novo” classista, racista, homolesbotransfóbico e também partidário está definitivamente saliente entre nós. Não é infrequente que o/a sujeito/a, colocado forçosamente diante da sua própria incompletude (manifesta pela “perda” eleitoral, pela “perda” na votação, pela “perda” de poder afinal), possa retaliar e reagir ainda mais violentamente, mais perversamente movido pelo puro regime do ódio. Temo por esse processo descontrolado, temo que retornem ainda mais fortemente todas as incompletudes inerentes de cada um/a, sem freios. Esses afetos primários mobilizados nem sempre são conscientemente controláveis, racionalmente metabolizáveis. Corre-se o risco da prevalência da pura agressividade destrutiva, deflagrada como parece estar agora pelo gozo do ódio do ser e do ódio invejoso (os dois somados!). Por isso a urgência da reação de uma espécie de afetação alternativa e simultaneamente contrária: afetiva de amor e efetiva em resultados de promover vínculos, promover escuta, acolhimento, inclusão democrática das diferenças e dos diferentes.

É preciso dar outra #partidA em tudo isso!

Parágrafos difíceis de escrever, mas necessários. Estamos mesmo no limite. No limite da jovem democracia brasileira. Só não enxerga quem não quer ou mesmo quem de fato deseja esse retorno autoritário para a política brasileira. Para que esses parágrafos não se tornem texto continuado é necessário reagir, urgentemente. A sociedade brasileira possui também valores que são contrários e diametralmente opostos a tudo isso que hoje vem/veio à tona da forma a mais desavergonhada. Essa palavra é a de ordem agora: vergonha! Eu me envergonho dessa política, dessa forma venal de governar, legislar e julgar, dessa injustiça generalizada para com aquelxs que mais precisam dela. E sei que temos, nos nossos mais íntimos relacionamentos, outros valores sendo cultivados. Mas a verdade é que, até agora, estamos e fomos incapazes de fazê-los transportar e ocupar de modo efetivo a esfera política brasileira. É por isso que dar A #partidA se torna uma possibilidade e uma ação política e social absolutamente urgente.

É para fazer chegar ao parlamento, aos governos, aos tribunais as vozes daqulxs que de lá estão e estiveram abissalmente excluídxs e que, por sua histórica condição de opressão, não conseguiram ainda trazer a sua profunda qualidade ética para habitar esses espaços institucionais. Com 9% de mulheres nas Câmaras, 8% de negros, outros percentuais ínfimos de segmentos LGBTT, pobres, deficientes, entre outrxs, a Política brasileira (essa com “P” maiúsculo) ainda não deu a sua efetiva contribuição democrática ao país. Estivemos e estamos dela ainda excluídxs. O que não significa que dela não façamos parte. Mas agora é necessário que façamos a nossa parte.

E é por isso que demos A #partidA: entendo a esperança nesse espaço de articulação e de mobilização político-sociais como a semente crioula de um futuro vigoroso e renovado para a democracia brasileira. Um espaço de AÇÃO POLÍTICA radicalmente HORIZONTALIZADO das e com as diferenças, aquelas que, de fato, farão mesmo “a diferença” democratizadora na esfera político-institucional brasileira. Um campo crítico emancipatório para todas as diferenças e os/as diferentes. As forças compartilhadas e sinérgicas de experiências ancestrais de opressão serão o seu combustível inicial: todas as formas de opressão, ainda que a energia feminista, a energia focalizada na radical democracia feminista, seja (apenas) o seu drive inicial. Cada pessoa que começa a trilhar esse caminho conoscx trás o brilho daquele olhar que clama por realizar OUTRA POLÍTICA, OUTRA ECONOMIA, OUTRA SOCIEDADE.

A #partidA é, portanto o nosso outrx regime de afetação, nosso outrx campo de ação política, esse outrx DESEJO de/por: ética, autonomia, potência, justiça, igualdade, direitos, cidadania, protagonismo, inclusão, horizontalidade, diversidade, responsabilidade, liberdade. As nossas rodas já começaram a girar e a força espiralada dessa potência vai se manifestar e será com essa energia que vamos responder à vergonha, a nossa e a alheia, e também às opressões. Com essa energia serão construídas as alianças necessárias para uma radical renovação da democracia brasileira, partida da auto-organização como chave de construção inicial, a forma de mobilização rizomática que está sendo viralizada pela urgência de sair do sofá, da casa, do trabalho, do fundo do poço e ir ao encontro para depois tomar adiante as ruas. Demos A #partidA. E você?

Nancy Spero – To the Revolution (1981)

[1] Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFMG e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM–UFMG), Doutora em Sociologia (IUPERJ), Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Psicóloga (UFMG).

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