Porque agora sabemos de tudo: ‘Não vale morrer’, de Leonardo Marona, e outros lançamentos

Porque agora sabemos de tudo: ‘Não vale morrer’, de Leonardo Marona, e outros lançamentos
Sob as máscaras ficcionais estão as pessoas e um momento de intensa perplexidade, em uma geração que se sente simultaneamente culpada e anestesiada pelo desastre civilizacional (Foto: Divulgação)

 

 

Na prosa ficcional brasileira há um passo ainda pouco visível, mais recente e variado, que traz aspectos muito singulares e novos para a configuração geral. Dois exemplos: a prosa de Leila Guenther, sutil e de construção lenta em seus mínimos, concisos detalhes, e a veloz e faiscante prosa multigêneros de Leonardo Marona.

Não vale morrer, seu novo livro, é pelo menos dois: na primeira parte é crônica ficcionalizada de uma geração, escrita em primeira pessoa; na segunda parte, oscilando entre a terceira e a primeira pessoa, é simulacro satírico que comenta o mundo — em específico, o Brasil — neste momento abissal da história humana, e o faz com fulgurantes mecanismos ficcionais, estruturando breves capítulos de sonho, trocas rápidas de foco e lugar, inventando as significativas máscaras de olhos vazios de Mark Twain e Albert Camus, anunciadas já na capa inquietante e que se tornam disfarces para o terrorismo literário. Numerosas piscadelas formais dentro da história prefiguram, também em citações (como a de Lost Highway, de David Lynch), os desdobramentos da narrativa, que são os desdobramentos de uma profunda crise geral de identidade e realidade.

Nascido em 1982, o autor, poeta e prosador — e, como se sabe também, o melhor livreiro do país —, logo na primeira parte escreve aquela crônica que agora direi rica de sua geração de escritores, quando seu personagem principal, o livreiro-poeta Leon Trapani, percorre seus dias encontrando personagens-amigos por vezes identificados com seus nomes reais (a exemplo de Leonardo Fróes, também autor do posfácio ao livro), por vezes, avatares de pessoas do meio literário do Brasil, e particularmente do Rio de Janeiro, que Marona não faz esforço algum de disfarçar além de um senhal de ficção. Assim, o livro soa por vezes como roman à clef, sem o ser — a propósito, o autor se inclui no experimento, e para que o feitiço que o transforma em personagem fique mais claro, alguns poemas de Marona aparecem escritos no livro por Trapani.

Esse seria apenas o princípio do que proporia como seu emprego ágil e volátil de vários gêneros, como também o thriller, o romance de formação (que vem a ser um romance de deformação) e outros que mencionarei abaixo, porque Marona nos diz algo penetrante enquanto nos distrai com o truque de mágica da narrativa ligeira, de vocabulário vigoroso, com energia poética e aduzido numa das melhores combinações entre língua falada e escrita. E o que nos diz poderia ser: sob as máscaras ficcionais estão as pessoas e um momento de intensa perplexidade, em uma geração que se sente simultaneamente culpada e anestesiada pelo desastre civilizacional, diante do qual muitos dos modelos mais imediatos de ação não podem ser mais do que um pot-pourri de referências desconectadas de uma realidade acionável, flagrando uma vida de perturbadores disjecta membra.

E por isso, quando a segunda parte se desliga da psicologia interna de seu (até então) protagonista, tudo ganha um ar quase farsesco, irreal, como uma encenação algo caricata que certamente lembrará ao leitor e à leitora Fight Club, de Chuck Palahniuk (mais tarde o filme homônimo de David Fincher), com seus viciados em irrealidade. Neste livro, como naquele, seus personagens vão a encontros dos Alcoólicos Anônimos e nos deparamos com uma mulher misteriosa que determina o surgimento de um caminho de ação entre amigos, destinada a um tipo de princípio revolucionário contra o onipresente fascismo, e que não por acaso marcará um ponto importante com uma frase que vem direto dos lábios androides de uma personagem de Blade Runner, de Ridley Scott — como o livro de Philip K. Dick do qual o filme é também uma refração: um ícone da ruína da empatia, vivida na ruína escura de um pós-guerra nuclear, metáfora da ruína diária que nos impomos pela violência, e que o livro de Marona ecoa de vários modos.

Por isso também as formas cambiantes na narrativa, entrelaçadas ao realismo mais direto da observação quotidiana e a uma troca veloz nas intervenções que não mudam apenas narrador e foco, mas toda a estrutura e o gênero do livro: estamos às voltas com um modo singularmente engenhoso de registrar as densidades variáveis da nossa percepção da realidade, distorcida pela força de avalanche das telecomunicações invadindo cada momento, por íntimo que seja, da vida humana, e reconfigurando suas estruturas numa combinação psíquica que já agora começa a mostrar a dificuldade que se tem em cindir da materialidade imediata da experiência os seus simulacros nas extensões virtuais, registradas, emocional e mentalmente, como experiência também. Se isso se manifesta como máquina reprodutora nos próprios veículos de mídia que operam essa gigantesca conversão perceptiva, o meio narrativo onde Marona cria sua disrupção começa a inaugurar tecnicamente a absorção crítica desse ruído.

E, daí, a enganosa leveza do texto — o enredo facilmente nos enreda — põe em movimento essa angustiante erosão da realidade no exato momento em que os personagens pretendem atuar de modo direto, ou intervir no mundo de modo decisivo: nesse ponto, a frágil e mutável rotina de um quotidiano sem ênfase se dilui em simulacros que recriam literatura, cinema, deslizando quase para fora da experiência e para dentro das antigas forças de atualização enérgica da vontade, o sonho e a magia (como se realiza na personagem que tem três idades e rostos, por sua Síndrome de Hécate). Essa erosão da realidade quando a ação definida se instala já era, em parte, a conclusão de Jean Baudrillard em Simulacros e simulação (1981), quando a realidade paradoxalmente não consegue mais ser real, e se vê aproximada apenas por meios que não a alcançam, forçando-a a se repetir topicamente, sem utopia. Lemos em Não Vale Morrer: “A utopia virtual culmina na distopia de um totalitarismo sem vontade”.

Novela de mistério, também, assim como excelente comédia de costumes escrita por um autor com raríssimo e arguto faro para detalhes reveladores, este é um livro incomum de quem já antes escrevera prosa igualmente incomum: para exemplo, Dr. Krauss (Oito e meio, 2017), novela de linguagem elástica, fragmentária, polimorfa e vivíssima, nos oferecia um escritor de qualidades ímpares, penso que bastante perceptível nos anteriores Conversas com leões (2012) e Cossacos gentis (2015). Aparentemente simples (Marona não constrói estruturas aberrantes nem poliglotismo ou neologismos, como James Joyce), é de uma urdidura notável para qualquer artesão da palavra: permite a aproximação indiscriminada de leitores curiosos de todo tipo, e os conduz por um campo de experimentos com complexidades que dependerão da abertura do próprio público.

E então para este livro pode-se, igualmente, fazer o caso de novela política, e já agora percebemos como os gêneros se multiplicam: de consciência aguda para a seriedade do período histórico que, sem escolha, vivemos — o teatro de horrores e imposturas de uma política que é economia e é guerra simultaneamente, e não mais às escondidas —, a ameaça fascista é abordada com a urgência que exige, mas também com inflexível sátira. Se vemos Luiz Inácio Lula da Silva aparecer rapidamente em entrevista, vemos também uma Livraria Antifascista, na qual é escrito um Manifesto Livreiro, e os participantes se chamam Aprendizes do Fogo (a partir de Bolaño), e num Rio de Janeiro onde se acham gangues crípticas como os Boys de Pasolini.

O humor paródico se mescla de tal forma com a crônica da vida que o apelo dessa narrativa se torna irresistível, também com as sagacidades frequentes de Marona que, se em Dr. Krauss aludiria obliquamente à famosa aforismática de Karl Kraus, construindo uma narrativa na qual o fragmento perceptivo é a peça estrutural, modificando também língua e linguagem quando movimentos dos personagens gerem distorção em ambas, em Não Vale Morrer a desestruturação da narrativa e o seu contínuo remontar podem se ler como uma narrativa em si — e há mesmo uma alusão ao Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que importa notar na sucessão de vida, e morte, e vida. Se a morte, o medo e a violência se tornaram os esqueletos no nosso armário psicossocial, este livro os atravessa de brilho literário, de alta feitiçaria, de antifascismo, de humor anárquico e de uma aposta metamórfica que, pela sua constante mudança — de foco, de vida, de referência — engana a morte (não a nega, que isso seria fascista) para responder-lhe com mais vida. Pode-se dizer deste livro o que ele mesmo diz a certa altura: “Que o mundo morria mais uma vez, mas estávamos juntos, como nos romances que líamos, prontos para o desastre”: o mundo agora morre mais uma vez, e neste romance estaremos todos juntos, prontos para o desastre.

 

Dirceu Villa é poeta, tradutor e ensaísta. Já publicou cinco livros de poesia, entre eles Couraça (Laranja Original, 2020).


[ficção]

por Redação

“Imagine uma imensa folha de papel com Linhas Retas, Triângulos, Quadrados, Pentágonos, Hexágonos e outras figuras que, em vez de permanecerem fixas em seus lugares, movem-se livremente sobre a superfície, (…) mas sem ter o poder de se elevar acima dela ou afundar-se abaixo de seu nível.” Assim é descrita a Planolândia, mundo bidimensional que ocupa as páginas do romance do inglês Edwin Abbott Abbott. Mistura de sátira social, ficção científica e teoria matemática, o livro traz as recordações de um dos habitantes da Planolândia e sua desestruturação quando o Quadrado conhece a Espaçolândia.

Em tom biográfico, o romance traz as memórias de D. em torno de sua família, especialmente da irmã M. É estruturado em 43 fragmentos curtos, como a imitar os movimentos fragmentados das recordações ou as gotas de morfina que penetram o corpo doente, como aludido no subtítulo da obra. Em uma narração que mistura prosa e poesia, o autor, o pernambucano Diógenes Moura, intentou recuperar as reminiscências da vida de sua irmã, vítima de um câncer fatal em 2019. Junto com o livro, será lançado um filme média-metragem, dirigido por Beto Brant, inspirado no romance de Moura.

Reunião de quatro livros de poemas do escritor paulistano, que é também mestre em Ciência Política e Sociologia pela PUC-SP. Desde seu primeiro livro, Tal hoje, que saiu em 1982, percebe-se um diálogo com o tempo que aproxima sua poesia da filosofia. Com o próprio autor escreve no prólogo, “que homem não desejaria um encontro com os antepassados? Uma espécie de redenção que envolvesse simultaneamente o Futuro?”. Para o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que assina a apresentação, sua poesia traz “humor, desamor, solidão, cinismo, ironia, alegria, absurdos, pequenos instantes de profunda concentração e contemplação”.


[não ficção]

Doutor em Sociologia pela Universidade de Wisconsin e professor de Sociologia da USP, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães debate a formação racial do Brasil anterior à Constituição de 1988 em seu quinto livro sobre a temática. Como escrevem Matheus Gato e Flavia Rios no prefácio, a análise do autor merece destaque, ao menos, pelo cosmopolitismo de suas abordagens; pelo “investimento em construir um aparato conceitual para viabilizar o estatuto científico dos estudos sobre raça” no país; o diálogo internacional com a literatura sobre o tema; e a procura de respostas aos impasses políticos sobre o debate racial no país. 

Análise sobre os desdobramentos, na natureza e na cultura, gerados pela relação entre pessoas e cachorros. Bióloga, filósofa e teórica do feminismo norte-americana, Donna Haraway enfoca essa questão sob diferentes perspectivas para esboçar as possibilidades de uma “vida multiespécie”: “a especificidade de certos mundos coletivos coconstruídos no tempo, no espaço e na carne, enquanto outros mundos deixavam de existir”, nas palavras de Fernando Silva e Silva, que assina o posfácio.

Uma das expoentes da primeira geração de artistas conceituais e da videoarte no Brasil, Anna Bella Geiger tem seu trabalho explorado no novo livro da série “arte, trabalho e ideal”. A obra é dividida em três eixos: um texto crítico de Estrella de Diego sobre a obra da artista; uma entrevista dela a Pablo León de la Barra; e a reprodução de imagens de suas obras. Em Anna Bella Geiger, escrevem os organizadores, há uma “busca incessante por  caminhos de expressão, sempre dentro de um processo contemporâneo que a levou, e ainda leva, a refletir em cada uma de suas obras a sua percepção da realidade como forma de expressão individual e como meio de contestar situações adversas”.

Na esteira do vertiginoso crescimento das empresas de tecnologias, Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, rastreia como o capitalismo, a partir de meados do século 20, transformou-se a ponto de substituir o “corpo da mercadoria” pela “imagem da mercadoria”. A tese central do livro é que, além de explorar a força de trabalho, o capitalismo aprendeu a explorar o olhar: “o capital explora o olhar como trabalho, compra o olhar em função daquilo que o olhar produz, e não apenas em função daquilo que o olhar pode ver”, como escreve o autor.


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