Por uma nova crítica das desigualdades sociais

Por uma nova crítica das desigualdades sociais
A sociedade é uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem (Foto: Markus Spiske)

 

Em conversa informal sobre igualdade e desigualdade no Brasil, um amigo meu foi confrontado com o problema do racismo estrutural. Em algum momento deu uma lacrada “protoliberal”: “A sociedade é racista, mas que sociedade? É preciso saber se as pessoas são racistas. Eu sou a sociedade”. A primeira e mais óbvia associação é com a recusa ideológica em enxergar desigualdades estruturais. Mas acredito que há mais a ser considerado nesta sentença, pois ela faz alusão a um dos maiores problemas do discurso progressista de crítica a desigualdade social: perceber as estruturas de desigualdade como característica totalizante da sociedade. A sociedade não produz apenas desigualdade, não produz apenas racismo e não produz apenas sexismo. Ela também produz os ideais de igualdade pelos quais medimos e criticamos todas estas e outras estruturas de desigualdades.

O discurso progressista acredita que a sociedade possui estruturas de desigualdade que definem a identidade da sociedade: o que ela é e o que ela não é. Neste sentido, a sociedade pode ser definida como sendo de classes, patriarcal e racista. As estruturas de desigualdade definem a sociedade. Para não ser de classes, sexista e racista, a sociedade teria que ser completamente outra. A identificação da sociedade com a desigualdade obriga a pensar em uma unidade estrutural para a desigualdade, mesmo que estas sejam plurais. Assim, o discurso progressista fala, no singular e não no plural, da estrutura de classes, do racismo estrutural e do patriarcado. Esta unidade estrutural é tratada, quase sempre, como traço do estado nacional, reproduzindo-se um “nacionalismo metodológico” insustentável na sociologia. O discurso progressista sobre as desigualdades sofre de um “deficit sociológico” que o impede de ver as possibilidades de transformar as estruturas de desigualdade, uma vez que não apreende as estruturas e decisões estruturais plurais e concretas que determinam as chances de vida das pessoas.

A crítica à desigualdade é reduzida à forma geral e inconsequente de crítica da sociedade, o que coloca para o crítico o paradoxo da crítica externa: quem critica a desigualdade está na sociedade ou fora dela? E a igualdade, está fora ou dentro da sociedade? A sentença de que a sociedade não pode ser racista, mas pessoas sim, não é apenas reprodução da “fala protoliberal” de que a sociedade não existe. É observação de que a crítica da desigualdade estrutural dos progressistas carece de autocrítica. Essa autocrítica passa por questionar as premissas acima.

A sociedade não é uma unidade estrutural, mas uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem, se reproduzem e se transformam. Desigualdades econômicas, políticas, jurídicas, educacionais, afetivas não seguem a mesma estrutura, embora se influenciem mutuamente. Por isso, classe, raça e gênero podem produzir desigualdades muito distintas em cada uma destas esferas. A redução das desigualdades de gênero na educação e sua maior perenidade no mercado de trabalho evidenciam isso. A crítica à desigualdade não deve ter como foco uma estrutura unitária. A crítica deve ser concreta e plural: quais formas de desigualdade de classe, raça e gênero determinam as chances de vida das pessoas em que sistemas sociais? A sociedade tem muitos racismos, muitos sexismos e muitas formas de desigualdade de classe.

A sociedade não é definida pela desigualdade, pois ela também inclui, como parte da vida social, não só a crítica à desigualdade, mas também estruturas de igualdade como a cidadania social etc. A crítica só é possível porque se apoia em normas e valores de igualdade vigentes na sociedade em que vivemos. Uma sociedade não machista, não racista e sem classes não seria inteiramente outra. A sociedade é mundial e possui um conjunto contraditório de possibilidades de evolução.

A sentença “protoliberal” de que a sociedade não é racista tem parte de razão, pois a sociedade é também antirracista, sobretudo porque vivemos numa única e mesma sociedade mundial. Não pode ser definida unicamente como racista.

Mas o que o “protoliberal” nos ajuda mesmo a ver é o problema do endereço da crítica às desigualdades: organizações, pessoas, grupos formalmente visíveis podem ser endereçados, responsabilizados por desigualdades ilegítimas, pois decidem sobre estruturas sociais, mas a sociedade, como unidade que abarca tudo que é social, da desigualdade à igualdade, não é alcançável, não tem endereço e sua crítica é tão charmosa quanto conceitualmente errada e politicamente inútil. A única crítica social com sentido real é aquela devotada a decisões e estruturas reais de organizações, que é o contexto responsável por alocar a maior parte dos recursos importantes nas desigualdades, como renda, poder e conhecimento.

A crítica e o lugar de fala

O conceito de “lugar de fala” foi banalizado pela política identitária que hoje domina o discurso progressista sobre as desigualdades sociais. Seu uso atual é predominantemente moral, e isto destrói seu potencial de servir a um discurso mais reflexivo (mais consciente de seus alcances e limites) sobre a desigualdade e suas consequências: as diferentes formas de sofrimento e humilhação de pobres, negros e mulheres. O objetivo dos identitários é demarcar posições de superioridade moral com base em um “campeonato de sofrimento”, no qual somente as “vítimas autênticas” da desigualdade e de suas consequências ganham o direito de falar e discursar sobre o problema.

Isto é uma prática moral, pois sua lógica é justamente construir julgamentos totalizantes sobre pessoas e grupos de pessoas, o que sempre resulta em repetição do binômio bom/mau. Não é uma prática política, pois a lógica da política é construir decisões coletivas, mesmo que seja necessário a ajuda de pessoas moralmente questionáveis. E também não é uma prática de esclarecimento científico crítico da sociedade, pois a diferença moral entre bons e maus, entre oprimidos e opressores, é insuficiente, para não dizer que atrapalha, o entendimento do mundo e por isso mesmo o melhoramento do mundo. Os identitários transformaram o conceito de “lugar de fala” em um mesmo e único “lugar de fala puritano”, que visa catequizar os moralmente inferiores, e não construir uma decisão coletiva (política) ou visão esclarecedora capaz de ajudar na política (ciência).

No entanto, julgo ser possível recuperar o conceito de “lugar de fala”, e justamente para explicitar quais os alcances e limites desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades. Proponho substituir o uso moral da ideia de “lugar de fala” por uma noção sociológica de “lugar de fala”: em vez de ser (moralmente) definido como a posição de superioridade moral de quem sofre de forma “original e autêntica” as consequências das desigualdades sociais, defini-lo como posição parcial de observação, com alances e limites, em determinado sistema social.

Nesta proposição, o elemento moral é relativizado pelo elemento cognitivo: o que define os limites e alcances de um “lugar de fala” são a relevância e as chances comunicativas de quem fala em um determinado sistema social. Na política, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros políticos, do público e dos setores politicamente envolvidos e organizados, das falas proferidas, das posições tomadas, das agendas de políticas públicas adotadas, formuladas e implementadas. Na ciência, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros cientistas de sentenças de verdade e falsidade sobre os fenômenos. Nesta visão sociológica, não é apenas quem profere a fala, ou seja, o indivíduo ou grupo isolado, que define o “lugar de fala” de quem quer que seja, mas também, e prioritariamente, o modo como a fala ou discurso são entendidos, aceitos ou recusados. O “lugar de fala” é co-produzido, como ensina a sociologia, pelo receptor. O “lugar de fala” é um “endereço social”, uma construção comunicativa e social fixada não apenas pela relevância pretendida pelo falante, mas também e sobretudo pela relevância atribuída pelos ouvintes.

Para explicitar o “lugar de fala” desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades, especialmente o discurso identitário, retomo a distinção que Weber traçou entre as vocações do político e do cientista. Existe uma tradição de sociologia crítica que acredita que o cientista social possui posição privilegiada para a crítica social, como se a ciência fosse, no mundo moderno, herdeira da religião na produção de uma visão de mundo válida para todos os domínios da sociedade. Ignora que a ciência não tem o condão de dirigir a política, como nenhum outro sistema da sociedade, com exceção da própria ciência. Por isso, é uma tradição de sociologia crítica arrogante e ingênua: não quer saber das condições de aceitabilidade e repercussão de seus discursos críticos em outras esferas, como a política, acreditando que a recusa e a não repercussão são frutos da “ignorância”, da “tolice”, enfim, da falta de adesão ao que seria o centro cognitivo do mundo.

Na crítica às desigualdades, esta tradição sempre confunde crítica científica com crítica política, e recorre ao insulto moral dos dissidentes para evitar ver que a crítica política das desigualdades não é um reflexo da crítica científica. Esta tradição ignora, portanto, a lição clássica de Weber sobre a diferenciação das esferas e das vocações da ciência e da política. Não há como explicitar corretamente o “lugar de fala” da crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades sem romper com esta tradição arrogante e ingênua: Não espero que a ciência possa dirigir ou reorientar o discurso, e muito menos a prática, dos progressistas sobre qualquer coisa, mas apenas que ela possa disponibilizar uma alternativa, cuja realização depende dos envolvidos com a política, cabendo ao crítico da ciência apenas refletir ou antecipar as condições que tornam mais provável esta realização.

O discurso dominante entre os progressistas sobre a desigualdade foi influenciado pela sociologia do unitarismo estrutural, que orienta a descrição e a crítica das desigualdades por uma noção unitária e totalizadora de estrutura social: a estrutura de classes, a divisão étnico-racial, o patriarcado. A crítica que proponho a este discurso parte de uma outra sociologia, baseada na diferenciação da sociedade em subsistemas e no pluralismo efetivo das estruturas de desigualdade. Nesta sociologia, o sentido da crítica da desigualdade é definido em cada sistema social. Isto significa, por exemplo, que uma crítica acadêmica sobre as desigualdades de gênero não orienta diretamente a desconstrução ou a mudança das estruturas de desigualdade entre homens e mulher na educação ou na economia: somente uma crítica educacional e uma crítica econômica são capazes disto. Por quê? Porque a mudança estrutural só é possível com disponibilização de alternativas reais em cada sistema social, com a oferta de soluções alternativas para os problemas – como a seleção social na educação e na economia – que antes só se resolviam com a estrutura vigente de desigualdade.

Desta forma, a crítica progressista das desigualdades precisa ser não apenas plural – situar-se em um sistema social específico –, mas também concreta, ou seja, envolvida com a imaginação de alternativas reais de mudança estrutural, o que exige um foco privilegiado na dimensão das organizações que regulam os modelos institucionais instituídos e reproduzidos nas esferas mais importantes da sociedade como a economia, a política, o direito e a educação. Do “lugar de fala” da ciência, que não decide nada sobre nenhum tipo de estrutura social relevante para a coletividade, a questão é: como criar descrições, discursos críticos sobre a desigualdade, plurais e concretos, que possam não apenas inspirar novas semânticas na política, mas também serem úteis na prática decisória sobre desigualdade nas mais diferentes esferas da sociedade.

O rebaixamento das expectativas

A crise do discurso progressista sobre as desigualdades reside no rebaixamento das expectativas de mudança estrutural que assola a esquerda no mundo inteiro. O modelo social-democrata europeu, fruto de críticas sociais concretas a desigualdades capazes de dirigir mudanças estruturais de largo alcance na política, na economia, no direito e na educação, perdeu seu ímpeto transformador. Para criar dignidade para todos, os sociais-democratas do final do século XIX e início do XX sabiam que precisavam reinventar a infraestrutura organizacional e institucional dos mais importantes subsistemas da sociedade, e isto se refletiu em programas robustos de transformação estrutural, que afetaram não apenas a distribuição de bens e recursos sociais, mas também e prioritariamente a sua própria produção.

Hoje, a social-democracia é um fetiche destituído de ímpeto transformador, e significa apenas a “humanização” de um mundo social tomado como inevitável. O máximo que se deseja é a distribuição marginal de bens e recursos, não mais a transformação estrutural. Neste ambiente de expectativas rebaixadas, a “crítica da sociedade”, totalizadora e sem aderência aos problemas reais de cada sistema social, fica reduzida um discurso de denúncia de processos sociais, sem nenhuma contribuição sobre as alternativas reais, “as possibilidades objetivas”, como diria Alberto Guerreiro Ramos. Comparemos a crítica de um Darcy Ribeiro, desde sempre composta por um elemento programático que desnuda e explora possibilidades de transformação social, mesmo denunciando as mais brutais formais de desigualdade e opressão, com a crítica de um Jessé Souza, desde sempre destituída de qualquer elemento programático, exceto alusões despolitizadas sobre o nível de “aprendizado moral” do “modelo social-democrata europeu”.

A contribuição científica para renovar a crítica progressista das desigualdades deve se concentrar na desconstrução dos discursos que naturalizam as desigualdade em cada sistema social, mas não apenas em forma de denúncia inconsequente, como se faz na “crítica da sociedade”, mas sobretudo na forma de um discurso programático humilde, reflexivo e consequente, ou seja, que reflita sobre as condições de sua utilização na política, buscando pensar não apenas políticas de redistribuição e reconhecimento identitário, mas sobretudo políticas capazes de transformar a infraestrutura organizacional e institucional da economia, da política, do direito e da educação, pois somente este tipo de transformação estrutural pode garantir redistribuição e reconhecimento para maiorias e minorias.

A crítica das desigualdades precisa se reaproximar da análise de políticas públicas enquanto instrumento de transformação estrutural e justiça social, que cria capacidade não só de redistribuir, mas também de reorganizar a produção da riqueza social e a ação coletiva. Sem isso, a redistribuição igualitária das chances de vida vai sempre encontrar limites enormes. A análise e a imaginação institucional de políticas públicas podem ser um momento de aprendizado humilde do cientista social crítico, pois aí ele é obrigado a disciplinar suas denúncias dos problemas com a necessidade prática de encontrar ou criar soluções para eles. Não deve servir para castrar o ímpeto transformador e rebaixar ainda mais as expectativas, mas sim para dar efetividade e consequência às aspirações progressistas de transformar o mundo para o engrandecimento da mulher e do homem comum.


ROBERTO DUTRA TORRES JUNIOR é ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)

 

 

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