Sujos, brutos, invisíveis: os trabalhadores de Ana Paula Maia

Sujos, brutos, invisíveis: os trabalhadores de Ana Paula Maia
A escritora Ana Paula Maia (Sérgio Caddah/ Divulgação)

 

Neste mês chega às livrarias Enterre seus mortos (Companhia das Letras), sétimo romance da escritora Ana Paula Maia. Como uma das apresentações mais significativas desta nova narrativa, temos o retorno de Edgar Wilson. Conhecido entre seus leitores desde o sexto capítulo de A guerra dos bastardos (Língua Geral, 2007), Edgar Wilson é como um fio de Ariadne para a compreensão do abandono nos enredos de Ana Paula Maia. Desde 2007, sua história nos vai sendo contada aos poucos, ao desenhar com pistas soltas a biografia metonímica do bastardo; daqueles sujeitos entregues à realização do “trabalho sujo dos outros” – título presente no livro em que se inicia a trilogia dos brutos em 2009.

Seu retorno em 2018 é a permanência desse projeto da escritora. Há nove anos, ao publicar as novelas Entre rinhas de porcos e cachorros abatidos / O trabalho sujo dos outros (Record, 2009), Ana Paula Maia dava início ao que chamara de trilogia “A saga dos brutos”, que se encerraria com Carvão animal (Record, 2011), como vemos na apresentação deste romance. Entretanto, o abatedor de porcos com quem nos encontramos já na primeira linha da trilogia traz o nome do mesmo capataz sanguinolento que trabalha para um mafioso na narrativa de 2007. Antecipando as três histórias, é com A guerra dos bastardos que Edgar Wilson surge para os leitores e, neste sentido, olhar para esse “nascimento” como um recorte da condição daqueles que estão do “lado de fora” talvez seja um lugar afetivo possível para dar conta dessa personagem que coleciona histórias de abandonos e ódios.

De maneira geral, os trabalhadores de Maia nunca seriam os queridinhos da sessão da tarde: eles são sujos, brutos, invisíveis. Seus trabalhos existem para manter a ordem do que está na superfície; para deixar limpo o cenário daqueles que não os veem como iguais. A dureza de seus corpos é o que lhes sobra para as lidas em crematórios, abatedouros, no manejo com o lixo e nos espaços afastados que comportam um falido sistema prisional. Sem filiações, esses bastardos habitam o subsolo, servindo ao descarte e com ele se misturando socialmente na imagem do resto.

Esses sujeitos abandonados são muitos, aparecendo mais recorrentemente com Edgar Wilson e seus múltiplos “E.W”, iniciais que remetem a Edgar Allan Poe e seu conto “Willian Wilson” e inscritas também em outras personagens da autora como: Elvis Wanderley (2007), Erasmo Wagner (2009, 2013) e Ernesto Wesley (2011). Mais do que uma mera composição de nomes duplos estranhos, “E.W” sugere uma filiação direta ao escritor norte-americano, ao mesmo tempo em que nos lembra, como leitores, de outras influências presentes na produção literária de Maia, como Fiódor Dostoiévski, Franz Kafka e Rubem Fonseca, por exemplo. “Estranhas no ninho”, as contiguidades de E.W recuperam os incômodos e as formas de bastardia que lemos nesses autores.

Sobre esse estado de abandono, a partir do radical do antigo termo germânico “bando”, deriva-se uma referência à exclusão da comunidade, como diz Giorgio Agamben no Homo Sacer (Editora da UFMG, 2002) a respeito daquele que é posto “fora da lei”.  Como parte desse processo – tanto na morfologia, quanto na leitura social – esses sujeitos convergem em si a indiferença e uma vida continuamente exposta ao risco. Logo, a brutalidade se torna um sinônimo para essa existência, mas não no sentido moral, senão como uma provocação capaz de fazer com que esses invisíveis apareçam para nós, agora entendidos como invisibilizados.

A volta de Edgar Wilson em Enterre seus mortos é uma contínua aposta da autora na composição dessas figuras. O trabalho da personagem com os animais agora é o de recolhê-los das estradas e enterrá-los, como uma problematizada decorrência biográfica do abatedor de gente, porcos e gados das outras narrativas. Longe dos leitores desde De gados e homens (Record, 2013), o reencontro com Edgar Wilson e suas ambiguidades éticas nos convida também a pensar nas relações que se dão a partir da hostilidade, sobretudo num país tão desigual como Brasil, em que o bastardo é criado a partir de marcadores perversos de deslegitimação que convergem questões de classe e étnico-raciais.

Nas narrativas de Maia, não cabem histórias de amor romântico, nem emulações de piedade. O afeto por suas personagens se constrói – ou não – numa perspectiva ética, em que cada capítulo parece nos confrontar com a possibilidade (ou disponibilidade) de reconhecimento desses sujeitos a partir do literário. Talvez seja por essa provocação experimentada pela ficção que não abandonamos Edgar Wilson. Nem nós, nem a autora cuja “saga” ainda parece não ter fim.


Maria Fernanda Gárbero é  professora adjunta de Literatura Brasileira e Teoria Literária na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)


 

 

 

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