Os ombros suportam o mundo?

Os ombros suportam o mundo?
O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (Reprodução)

 

O clima que se instalou nas ruas e redes sociais durante esse segundo turno, acentuando de vez a polarização entre bolsonarismo e democracia, vai deixando mais e mais pesado o ar em todos os ambientes que frequentamos. Faltando uma semana para que tudo isso se expresse nas urnas, estamos todos com a cabeça fervendo de dúvidas, não apenas sobre o resultado da eleição, mas sobre tudo aquilo que a disputa eleitoral colocou para fora e que não vai desaparecer tão facilmente. Na rua, no ônibus, na padaria, no trabalho, na casa dos parentes, na porta da escola, na sala de aula, na arquibancada, não há mais lugar em que não nos invada o mal-estar de imaginar que ali podem estar as pessoas que decidiram entregar nosso país ao fascismo.

Não sei, assim, se era a melhor hora para pegar esse pequeno exemplar de bolso de Sentimento do mundo para reler. Todos sabem a história: Sentimento do mundo é o terceiro livro de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), lançado em 1940 numa tiragem de 150 exemplares que ele distribuiu aos amigos e outros escritores. Reunindo 28 poemas escritos na segunda metade da década de 1930, num Brasil sob o Estado Novo, olhando para a ascensão dos regimes totalitários na Europa.

É um dos livros de poesia mais incríveis que alguém já escreveu, pela forma como lida com o que a poesia foi até ali, pela forma como indica o que a poesia pode ser dali em diante, mas muito, também, pela forma como se deixa permear e reage a um dos momentos mais duros da história da humanidade. Desde o título, Drummond expõe a fratura sobre a qual vai passear em todos os poemas do livro. A cada página, essa busca por um “sentimento do mundo” é mais intensa e abismal, não apenas porque o poeta incorpora os elementos do terror que o cerca, mas principalmente porque a eles opõe um humor persistente, alguma esperança, outros sentimentos.

Há um impacto especial em ler esses poemas hoje, a poucos dias de uma eleição que nos colocou de modo tão profundo a encarar, vivíssimos, não apenas os grandes conflitos da história brasileira, mas da própria história da sociedade e do homem como conhecemos. Figura quebrada – homem de partidos, homem partido – a que Drummond tantas vezes deu voz, a voz rouca que aspira à alegria, a voz esperançosa que tropeça em tristezas individuais e coletivas, rende-se e rebela-se, encastela-se e emancipa-se, atrai e repele. Página a página, Sentimento do mundo nos lança nesse redemoinho.

Já no primeiro poema, que dá título ao livro, o poeta se reconhece: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”, e vê a si mesmo “disperso,/ anterior a fronteiras”, entrando num “amanhecer/ mais noite que a noite”. Na “Confidência do itabirano”, o passado também o abandona: “é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”. E daí ele salta para o angustiante “Poema da necessidade”, repetindo “é preciso, é preciso, é preciso”: casar João e anunciar o fim do mundo, salvar o país e ler Baudelaire, suportar uns, odiar outros, mas viver com os homens.

Na “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”, salta outra dimensão forte do livro – o sonho –, apresentando a moça sem corpo que vem amar na cidade “quando as polícias dormem”. E depois o rasgo no tempo que é “Tristeza do Império”, em que “conselheiros angustiados” sonham com “ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático”.

No belo poema seguinte, em prosa, “O operário no mar”, Drummond já aponta para outra das angústias a que voltaria muitas vezes (e que talvez explique muito do que somos hoje): o fosso que se coloca entre as classes sociais. Diante do operário que atravessa a cidade até abrir o mar, diz o poeta: “Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos”. Só resta, ao final, a pergunta penetrante: “quem sabe se um dia o compreenderei?”

Nesse mergulho-vertigem de poema a poema, as imagens que Drummond busca são cada vez mais intensas, como a de “Menino chorando na noite”, em que o mundo todo se resume a um menino que chora enquanto toma uma colherada de remédio. Daí vai ao “Morro da Babilônia”, recebendo o cavaquinho – essa “gentileza do morro” – como um respiro no meio da atmosfera de terror. E passa ao “Congresso Internacional do Medo”, em que o amor está refugiado e só existe o medo, “nosso pai e nosso companheiro”, cravando no horizonte que um dia “morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”.

E a espiral dos poemas vai pelas “fotografias intoleráveis” de “Os mortos de sobrecasaca”, passa pelo “Brinde no juízo final” (quando chega a hora dos “poetas de camiseiro, […] poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,/ chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,/ poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil”) até encontrar o “Privilégio do mar” (beber cerveja num “terraço mediocremente confortável”, sobre um edifício sólido, sólido como o mundo). E vêm os “Inocentes do Leblon”, que tudo ignoram e esquecem graças a “um óleo suave/ que eles passam nas costas”. E a “Canção de berço”, que anuncia à criança um tempo em que nada terá importância: o amor, a carne, a vida, os beijos. Daí à “Indecisão do Méier”, acusando um mundo em que, com tão pouco que nos divirta, é um desperdício que os dois cinemas do bairro ofereçam “a melhor artista e a bilheteira mais bela”. O que se eleva na “espiral de desejo e melancolia” de “Bolero de Ravel” logo vai ao chão em “La possession du monde”, com a visita do cientista europeu aos mamoeiros de um quintal no Rio de Janeiro.

Na “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”, Drummond dá um largo abraço em Manuel Bandeira, poeta que nos leva a todos a “um mundo amoroso e patético”, para nos fazer sofrer: “É difícil de explicar/ esse sofrimento seco,/ sem qualquer lágrima de amor,/ sentimento de homens juntos,/ que se comunicam sem gesto/ e sem palavras se invadem,/ se aproximam, se compreendem/ e se calam sem orgulho”.

Parece haver, a partir daí, uma virada mais brusca nas tramas do livro, surgindo em sequência alguns dos principais poemas de toda a obra de Drummond. Começa com “Os ombros suportam o mundo”, falando de um tempo em que “o amor resultou inútil” e “o coração está seco”, tempo em que “nada esperas de teus amigos”: “Teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança./ As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/ provam apenas que a vida prossegue/ e nem todos se libertaram ainda”. Enfim, “um tempo em que não adianta morrer”.

Depois vem o formidável “Mãos dadas”: diante de companheiros que “estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”, o poeta conclama todos a seguirem juntos e declara: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente”. Ao colocar sua poesia na trilha dessa “vida presente”, Drummond antecipa o poeta que em 1945 daria aos leitores A rosa do povo, em que, de uma vez por todas, “O tempo pobre, o poeta pobre/ fundem-se no mesmo impasse” (“A flor e a náusea”).

Numa outra volta, o poeta apresenta “Dentaduras duplas”, uma dentadura capaz de libertar “a boca […]/ das funções poético-/ sofístico-dramáticas”. E “Revelação do subúrbio”, cruzando um campo de Minas, que de manhã é das laranjas e em que “à noite só existe a tristeza do Brasil”. Depois, “A noite dissolve os homens”, que numa primeira parte, de versos curtos, anuncia que “A noite anoiteceu tudo…/ O mundo não tem remédio…/ Os suicidas tinham razão”, para, na parte seguinte, de versos mais longos, abrir-se para a aurora, que vem libertar, porque “O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos”. E exalta: “Havemos de amanhecer”.

Drummond, a seguir, em “Madrigal lúgubre”, quer fugir do mundo com uma princesa que mora numa “casa feita de cadáveres”. Em “Lembrança do mundo antigo”, o voo da imagem leva ainda mais longe: ao redor de Clara, tudo era harmonia, “o guarda-civil sorria”, “o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo”, não era proibido olhar para o céu, não havia perigo, “havia jardins, havia manhãs”.

Os três últimos poemas do livro – “Elegia 1938”, “Mundo grande” e “Noturno à janela do apartamento” – formam uma outra sala das mais densas do livro. O “mundo caduco” a que o poeta renuncia em “Mãos dadas” agora volta como aquele para o qual “trabalhas sem alegria”. Olhando-se no espelho do tempo, Drummond acusa: “Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra/ e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer”. E o orgulho do itabirano – ferro do passado – agora se projeta para o mundo e para outros séculos: “Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva”.

O coração e o mundo, aliás, são os alimentos de “Mundo grande”, porque o poeta descobre, chegando ao final da viagem, que seu coração é bem pequeno, um simples “peito de homem” em que não é possível amontoar todas as cores e dores dos homens. Lá fora, “o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias/ entre o fogo e o amor”. Então sabe que deve novamente se multiplicar, conclamando seus irmãos para a tarefa que move todo o livro: “Ó vida futura! Nós te criaremos.”

O livro se encerra com “Noturno à janela do apartamento”, poema que repõe o homem pequenino à contemplação do mundo, pela janela do seu apartamento, sabendo que “um salto, e seria a morte”, mas prefere “a integração na noite”, porque a vida circula, como líquido, na escuridão. Ele não salta, o leitor também não.

É assim Sentimento do mundo. Livro imenso, que tantas vezes se abre, tantas vezes se fecha. Digo: não apenas nós abrimos seu volume e voltamos a ele tantas vezes, mas a própria dinâmica dos poemas, em seu conjunto, com tantas formas variadas, com um vocabulário que passeia entre os registros mais diferentes, é de alguma maneira a expressão poética das aberturas e obstruções em que nos vemos diante da enormidade da vida e de seus desafios, bem como diante da nossa pequenez.

E por que voltar a esses poemas, velhos de quase 80 anos, numa hora dessas, em que outros medos, outras noites, outras mãos querem pesar sobre nossos ombros já tão sobrecarregados? Por que voltar a um livro que fala de como nos estranhamos, de sonhos de que caímos, da coragem que nos falta? Por que forçar o leitor a um passeio por Sentimento do mundo quando há tanta notícia desesperadora sobre o tempo presente batendo à nossa porta? Porque a poesia nos ensina que sentir é urgente.


> Leia a coluna de Tarso de Melo, quinzenalmente no site da CULT

(1) Comentário

  1. Obrigada pelos sentimentos que em mim brotaram enquanto li seu texto. Sim, “a poesia nos ensina que sentir é urgente.”

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