Obras poéticas de Alvarenga Peixoto: edição de tudo

Obras poéticas de Alvarenga Peixoto: edição de tudo
Edição traz relato da experiência da pesquisa da matéria do livro, que pode instigar outros pesquisadores (Foto: Patrick Tomasso)

 

A casa Ateliê Editorial acaba de lançar uma antologia do poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1792) organizada pelo pesquisador Caio Cesar Esteves de Souza, com o título de Obras poéticas de Alvarenga Peixoto.

O livro é mais do que a antologia porque traz um estudo muito criterioso, feito por seu organizador, que esmiúça a fixação de cada poema. Foram editados todos os manuscritos e impressos de todas as versões encontradas do conjunto conhecido da obra poética desse autor, agente no movimento separatista da Inconfidência Mineira. Além da preocupação filológica com as variantes dos escritos e o percurso de suas edições livrescas e manuscritas, Caio Esteves traz a público seis poemas inéditos em papel impresso, encontrados por ele na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP.

Kenneth Maxwell, o brasilianista que faz a apresentação do livro, destaca o caráter performático das oralizações supostas das primeiras “publicações” de alguns poemas. O prefácio da edição foi elaborado pelo professor João Adolfo Hansen, que declara o que agrada mais na antologia: conhecer as circunstâncias daquele presente de invenção, no século 18, de circulação e uso dessa produção poética, além de seus suportes materiais. Não obstante, o prefaciador também alude a um círculo vicioso de autores no sistema literário do Brasil, não estudados porque não lidos, e vice-versa.

Ambos, apresentação e prefácio, suscitam um convite ao conhecimento deste poeta luso-brasileiro. O problema do distanciamento dos leitores brasileiros em relação às letras produzidas antes da modernidade literária é um fato, cujas causas são demasiadas complexas para este lugar. Uma experiência escolar que imagino encontrar-se registrada na memória de muitos brasileiros é aquela confusão nominal que estudantes do nosso sistema literário nacional vivenciamos de, longe de interagirmos com os versos e livros de nossos autores, ter de decorar seus nomes e traços biográficos.

No caso dos poetas “árcades”, assim denominados convencionalmente pela historiografia da literatura, dois poetas no grupo dos Confederados de Minas têm quatro sintagmas nominais próximos, e ainda mais que coincidentes em dois dos quatro vocábulos: Inácio José de Alvarenga Peixoto e Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Pronto! A confusão daí está reposta. Para professores, já passou do tempo de agirmos para alterar esse cenário de alheamento da produção poética da língua portuguesa. E esse é o postulado de edições bem cuidadas assim.

A respeito do método dessa edição, a unidade dada ao livro congrega a dispersão territorial e material de todos os textos que traz, tornados públicos na variedade de suportes materiais, por meio de escritos na manuscritura, em folha volante impressa, em códices impressos coletivos e um em periódico impresso encontrados em variados arquivos e bibliotecas da Europa e do Brasil: em São Paulo, Rio de Janeiro, Lisboa, Coimbra, Porto e Évora.

Como fazer caber essa dispersão material num só livro? O organizador é sincero em tudo, em especial ao comunicar ao leitor o critério de agrupamento dos blocos de poemas segundo a localidade em que foram encontrados, sem querer fazer supor qualquer laivo de pseudocientificidade nas escolhas, isso para quem fizer questão de cientificidade em procedimentos filológicos. Fac-símile de uma dispersão, fica claro que seu organizador não quer retirar da obra nada que lhe é devida.

Embora Caio Esteves escreva dissenso ao explicar um dispositivo metodológico de sua opção editorial, parece que, neste terreno de fontes primárias e variantes textuais, ele quer briga. O pesquisador português Rodrigues Lapa, ao organizar uma Vida e obra de Alvarenga Peixoto em 1960, pediu piedade à alma de Alvarenga; por sua vez, Caio Esteves enseja-lhe leitores de sua obra, e que não busquem “o genuíno dos originais” mirificado no imaginário coletivo dos seus versos. Evidentemente a escolha pela edição das variantes conhecidas só foi possível pela pequena extensão da obra, contável na quantidade de papéis. Ação editorial semelhante da obra atribuída a Gregório de Matos, por exemplo, esbarraria no grande volume de variantes dos poemas seiscentistas a ele imputados.

Outro lado bom da edição é o breve relato da experiência da pesquisa da matéria do livro, que pode instigar outros pesquisadores a continuarem essa e outras investigações. Nesse sentido entende-se que Caio Esteves menciona sempre questões próprias das letras setecentistas, como precisamente a necessidade da observação da materialidade dos suportes, pois nos aspectos materiais desta produção letrada, como os riscados de autógrafos ou cópias, podem aparecer respostas para algumas dúvidas e ignorâncias sobre tais letras.

É o caso da questão (central), que emerge do estudo apresentado, da inserção de textos variados em seções diversas de códices manuscritos: essa prática pode ser conjecturada, quem sabe, pelo conceito de imitação ainda presidir a cultura letrada do século 18, tempo em que as edições manuscritas coletivas traziam juntamente modelos, êmulos e imitações. É comum nestas coletâneas, como aquelas de onde Caio Esteves retirou uma parte desses poemas, trazerem escritos de autores contemporâneos misturados com escritos de autores modelares, modernos e antigos, e de suas imitações, unidos por um componente retórico ou poético como, por exemplo, um lugar-comum.

O poeta inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto viveu turbulentos 48 anos da vida da América portuguesa como doutor, coronel e legislador, no Mundo sul-americano que ainda parecia Novo aos inconfidentes do século 18. Na prática das letras, é quase consensual que ele tenha adotado o pseudônimo árcade de Eureste Fenício, ou o de Almeno. Interpreta-se Eureste como o que vem do Oriente; estando no Brasil, pode ser a Europa, ou o mar Mediterâneo, que já fora fenício. Almeno pode vir de qualquer pastoral. De resto, dois anagramas fáceis de bolar.

A leitura dos poemas é o leitor que vai fazer, mas destaco brevemente algumas poucas impressões. Nas Obras poéticas de Alvarenga Peixoto, há alguma variedade de espécies de poesia escritas, antes faladas supostamente, pois a pista de que alguns textos tenham passado pela performance oral antes do registro escrito aparece com frequência neste estudo. Há muitos sonetos, há odes e retratos, em versos longos e curtos. Não há poesia épica, como ocorre na obra do poeta contemporâneo Cláudio Manuel da Costa, mas há poesia menor, sim, do que a coisa (res) bélica, de que não trata; e do estilo, que não costuma se alevantar, só o Pão de Açúcar se levanta uma vez, em sonho poético, na figura de um Índio valeroso, ativo e forte, que bate o pé. Mesmo assim, quem sabe outros novos leitores possam encontrar agudezas ali mesmo na mediania das musas de Minas.

Na Galaria de Almeno, que constitui a novidade dessa edição, cada retrato é composto a partir de uma tópica. No Retrato 1 de Armânia, palavras iniciais são:

Armânia Bela, / quem te retrata / Eu pinto as cores / dirão de quem

 O retrato pintado é ameno, seguindo a convenção do gênero, como está dito nos estudos do livro, mas os vocábulos escolhidos trazem uma sonoridade, ainda que apenas sintagmática, que faz lembrar os sons de versos, – fonemas, que sejam, como os de versos seguintes:

Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
[Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris]

Um verso canta a guerra em latim, o outro pinta a bela Armânia. As palavras se parecem, são parônimas, e atualizam constantes metáforas bélicas. Será que é ouvir demais? No Retrato 3 de Josina, a voz do poeta mesma sugere:

…………Do mais que encobre
Tela decente
Ninguém intente
Ser sabedor.

Os sonetos também trazem surpresas. Um dos mais curiosos – Por mais que os alvos cornos curve a Lua, – recorda os sonetos “seiscentistas” quer pela disposição rigorosa do argumento em quartetos e tercetos, quer por lembrar a célebre imagem primaveril do poeta Luís de Gôngora, embora o disse-me-disse da chamada “guerra dos poetas” das décadas de 1760-1770, conforme Caio Esteves informa, não tenha levado em conta esta possível emulação do modelo. Imitação de agudezas parece ser ainda o soneto Não me aflige do potro a viva quina, pelo encadeamento retórico dos versos e pela matéria. Os encômios, por sua vez, são politicamente implacáveis:

América sujeita, Ásia vencida;
…………..África escrava, Europa respeitosa;
Ponto.

Enfim, há muito a mostrar. Papel da resenha não é tratar dos poemas, mas do livro. Estas Obras poéticas de Alvarenga Peixoto da Ateliê Editorial é uma boa notícia para a desigual fortuna (ou desfortuna) crítica de Alvarenga Peixoto nas letras brasileiras. Nele é tudo bom! Desde a compilação de todos os escritos que compõem o corpus do poeta, o exercício filológico do organizador, até a elegância material da edição. Uma lufada de ar fresco dos invisíveis vapores, das cascas enroladas de poesia confidente, vapores rarefeitos no sistema literário brasileiro, de fato.

Maria do Socorro Fernandes de Carvalho é professora do curso de Letras da Unifesp.

Alvarenga Peixoto

Obras Poéticas de Alvarenga Peixoto, Org.: Caio Cesar Esteves de Souza, Ateliê Editorial, R$ 88

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