O som do agora

O som do agora
(Ilustração: Marcia Tiburi/Revista Cult)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2021 é “sonho”.


Nasci em 1969, em Londrina, no Paraná, seis dias depois de o homem ter pisado na Lua. Parto difícil, uma das primeiras sobreviventes de uma cerclagem no Brasil. O Hospital São Leopoldo não existe mais. O médico que me deu a vida tirou a sua própria com um serrote, vítima de paixão. Essa história que meu pai contava com uma certa vanglória pregou a minha vida, pois nela tinha muito amor, desespero e determinação.

Como diria o músico Jorge Ben Jor, eu nasci num país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. Isso era verdade, mas em 1964 um golpe militar assolou e arrasou o país. Os militares assumiram o poder, obrigando o presidente João Goulart, legitimamente eleito, a fugir e se exilar no Uruguai e, depois, na Argentina.

O país encontrava-se em franco processo de modernização e a sociedade brasileira desenvolvia-se de forma rápida, deixando para trás seu passado agrário para se tornar uma nação predominantemente urbana e industrializada. O regime militar foi instaurado bem no momento em que o país experimentava essa transição, que inexoravelmente acabou vindo, mas não de forma humana como se pretendia, bem pelo contrário. Anos obscuros se seguiram: direitos humanos eram aviltados a todo momento, intranquilidade política e falta de liberdade de ir e vir, de imprensa e de expressão pautaram esses tempos sombrios.

Pessoas foram presas, torturadas, desaparecidas, mortas, muitas fadadas ao exílio. Cresci durante esse período de exceção, cercada de política e de sonhos. O sonho do meu pai era, além de retomarmos a democracia, que eu entrasse para a diplomacia e representasse o Brasil mundo afora. É muito mais difícil sair dos mundos do que entrar neles. Saí e entrei em vários mundos. Uma coisa leva a outra, que leva a outra. E nesse vaivém sonhei outro dia com meu pai. No sonho ele estava vivo e com a mesma verve de sempre, emocionado, discursou: „Precisamos dar um basta nessa coisa toda. O ontem nunca poderia voltar a ser o amanhã, mas infelizmente, se não resistirmos, será o hoje mais rápido que pudermos vislumbrar.”

_ Paula _ cantarolou ao final _, acorda Maria Bonita / levanta, vai fazer café / que o dia já vem raiando / e a polícia já está de pé.

Essa marchinha de carnaval ele cantava frequentemente na minha infância e havia aí um alerta afetuoso: não há aurora sem luta. E o som do agora é de reação, não temos mais tempo a perder.

Paula Weiss, 52, é assessora desde 2014
da prefeitura de Frankfurt na área cultural

 

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