O Poder é Logístico

O Poder é Logístico

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setembro de 2021 é “manifestação”


 

Nos últimos séculos ocorreu uma transformação significativa no exercício do poder. O poder foi justificado historicamente de diversas maneiras diferentes, desde uma fundação teológica na Idade Média até a constituição das repúblicas modernas esclarecidas. Hoje, não temos um fundamento transcendente para manutenção do poder além dos valores morais que organizam os afetos políticos. A potência de conduzir condutas não é simbólica, mas logística. Outrora o poder estava claramente aparente na sociedade: Deus, Igreja, Partido, Papa, Povo; esse é a visão tradicional do poder.

Já se passaram os tempos em que manifestações políticas simbólicas tinham uma efetividade prática contundente para transformação social. Nessa época, a verdade era o ideal de coesão social, pois amparava-se tanto na religião quanto na racionalidade. As instituições políticas não são mais onde os poderes concentram-se, não existe verdade transcendente na política, apenas templos edificados, ruínas que prestam uma homenagem póstuma à outra forma de política que tivemos. Essas instituições estão esvaziadas das relações de poder, tanto estruturalmente quanto simbolicamente.

Alguns dirão que as manifestações ainda podem fazer “pressão política” nas autoridades. Contudo, apesar de não estar errado, esse argumento dirige-se à uma política institucional, portanto, essas manifestações somente podem ter consequências reformistas. Não é esse o debate em questão aqui, pois em tempos extremos devemos manter no horizonte a necessidade de transformações estruturais.

Então, onde está situado esse poder hoje? Essa questão é tributária de uma noção localista das práticas de poder, justamente essa qualidade não se sustenta mais. O poder organiza-se através de uma rede de influências, interseccionais, difusas, fragmentárias, e por isso mesmo, talvez tanto mais complexas quanto efetivas. Ele não está em nenhum lugar porque não é recurso, não é posse, ele é relação. O poder tornou-se rarefeito e não sabemos se esse foi seu fim ou aperfeiçoamento.

A mudança na concepção e funcionamento do poder é muita clara quando analisamos as transformações nas lutas políticas feministas, por exemplo. No decorrer do tempo, essas reivindicações defenderam tanto uma condição de vida melhor das mulheres do ponto de vista material (salários, violência, saúde etc.), quanto as opressões normativas da constituição do gênero e sexualidade em uma estrutura heterocisnormativa. Portanto, ainda que os movimentos políticos no campo do gênero ainda tenham como objetivo uma melhor condição de vida para “gêneros” e sexualidades dissidentes através da política institucional, isso não é suficiente para uma transformação considerável, pois o poder produz formas de vida.

Se o poder não está situado em lugar nenhum, como podemos reivindicá-lo? Exatamente porque ele não é posse, não podemos tomá-lo dos que não o possuem. Antes as práticas políticas eram justificadas em um poder de base transcendente, e se ele não se justifica mais nessa transcendência além da sociedade, ele é imanente. As relações de poder são imanentes à vida. Contudo, isso talvez não signifique que ele passou do líquido para o gasoso permanentemente. Uma transformação efetiva da ordem social pressupõe que direcionemos os esforços para as bases que garantem o funcionamento dessa ordem social, por isso, o poder hoje é mais logístico do que nunca, ele concentra-se nas infraestruturas (produção e especulação).

Os espaços físicos das instituições políticas, as ruas, as praças públicas, são todos engodos revolucionários caso não sejam pensados em sua posição estratégica nas infraestruturas de funcionamento social. Não podemos nos encantar por manifestações saudosistas que se apegam à apoteose da ocupação das ruas. Mas isso não quer dizer em suma que os corpos em aliança não tenham força política, porque verdadeiros laços afetivos desenvolvem-se no cotidiano da luta, na transpiração coletiva dos corpos. Isso apenas quer dizer que hoje não basta mais a fantasia revolucionária da cidade sitiada.

Por isso, é necessário que haja uma organicidade entre estratégias que levem em conta a infraestrutura socioeconômica (desde tecnologias de plataforma até centros logísticos de transporte e capital financeiro) e ocupação coletiva de espaços. A manifestação recente – de 23 de setembro – na sede da bolsa de valores em São Paulo é um bom exemplo. Se o poder hoje é logístico, se ele é infraestrutura, devemos nos direcionar a esses nódulos de influência. Somente assim poderemos fazer valer nossa potência política de coletivo de corpos que querem uma outra forma de viver. Alguns amigos nossos, de um tal Comitê Invisível reforçam: bloqueemos tudo!

Ítalo Nascimento, carioca, 30 anos, doutorando
em Filosofia com saudades do baile da gaiola.

 

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