O mel da voz: poemas para Inana, e outros lançamentos

O mel da voz: poemas para Inana, e outros lançamentos

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Nas antigas civilizações rurais, o sagrado era o elemento em torno do qual girava toda a experiência humana. Um sagrado múltiplo que adquiria diversas feições e envolvia todos os aspectos da vida: nascimento e morte, enfermidade, cultivação da terra, sexo, guerras, casamentos e rituais remetiam ao poder dos deuses e das deusas, à linguagem da natureza.

Inana: antes da poesia ser palavra era mulher (sobinfluencia, 2022) é um livro que nos fala da relação com o sagrado a partir de duas personagens femininas: a deusa Inana, a mais importante do panteão mesopotâmico, e a sacerdotisa Enheduana, que foi a primeira pessoa de que temos registro na história da humanidade — não apenas a primeira mulher — a assinar sua obra.

O trabalho que Guilherme Gontijo Flores e Adriano Scandolara (tradutores, poetas e pesquisadores) apresentam nesse livro — que inclui também o prefácio da historiadora Katia Pozzer — propõe um mergulho poético no universo da Mesopotâmia: mergulho vívido em que textos e personagens são trazidos para o presente, retomando sua voz e seu corpo. Gontijo Flores e Scandolara oferecem um volume conciso e abrangente, que pode ser lido a partir de diversas perspectivas: como testemunho histórico de uma cultura milenar, documento para pensar práticas religiosas antigas, mas antes de tudo como livro de poemas em que a arte da palavra, o mágico e o mítico confluem.

Como ressalta Scandolara em sua introdução, nesses textos os estereótipos de uma feminilidade frágil e submissa, sedimentados ao longo dos séculos, não encontram respaldo algum, muito pelo contrário: as figuras de Inana e Enheduana revelam os vestígios de civilizações matriarcais antiquíssimas, remetendo àquelas formas de organização social em que as mulheres regulavam o âmbito religioso, e que funcionaram até a chegada de sociedades de tipo patriarcal. Com Inana e Enheduana — uma deusa e uma sacerdotisa —, o sagrado é em parte restituído à esfera feminina, resgatando os traços de uma ancestralidade remota que sobrevivem dentro dos então novos impérios.

Inana é complexa e multiforme — é aproximada à deusa semita Ishtar e associada ao planeta Vênus —, caracterizada por certa ambivalência, sendo suas virtudes aparentemente antagônicas: é a deusa da guerra, do amor e do sexo, rainha dos céus e da terra. É uma divindade mais ativa do que receptiva — por isso, apesar de ser relacionada à fertilidade e ao sexo, não deve ser considerada uma deusa-mãe —, e o que a define em primeiro lugar é sua força vital: “deusa da energia do desejo” que se expressa tanto no amor quanto na guerra.

Feito um dragão……………. envenenaste a terra estranha
o grão de Ezina não aguenta….. teu trovoar na terra feito Ishkur

feito uma inundação……… que desce da montanha
supremo ser…………………. de céu e terra Inana.

Ou ainda:

Na frente de batalha……………… a teus pés tudo tomba
em tua asa senhor………………… o dente corta pedra

feito o ataque da tormenta……………… tu atacas
no troar do trovão……….. tu atroas

Ágil e alada, Inana é furor e fúria, seu ímpeto é capaz de destruir inimigos e terras estrangeiras: Inana envenena, inunda, devasta. É divindade múltipla, e é também deusa onisciente e sábia, misericordiosa e justa.

Tu dos justos dons………………. senhora das senhoras
nascida em santo ventre……………. suprema sobre a própria mãe

onisciente sábia……………… senhora de todas as terras

[…]

deusa certa e justa […]
justa misericordiclara……… aqui recito os dons que tens

Por outro lado, Enheduana (c. 2285-2250 a.C.), princesa de Acade e Suma Sacerdotisa no templo de Ur, marcou o início daquela arte que muito mais tarde chamaríamos literatura, sugerindo pela primeira vez a noção de autoria, fato bastante curioso porque naquela época não existia o hábito de associar o próprio nome a uma composição, e ainda menos o conceito de obra autoral, que se afirmaria muito posteriormente, tanto nas culturas orientais quanto nas ocidentais.

Nin-me-shara, a “Senhora dos dons”, traduzido nesse volume por Guilherme Gontijo Flores, é um poema que tem mais de quatro mil anos, composto em língua suméria e grafia cuneiforme, escrita sobre tabuletas de argila; nele a sacerdotisa utiliza a primeira pessoa, incluindo também o nome pelo qual é conhecida:

No sagrado Gipar………… penetrei teu serviço
eu sacerdotisa En………… eu Enheduana

trazendo o cesto ritual…….eu entoei um canto de alegria

Ou também:

e eu Enheduana……………… vou recitar a prece dela
vou dar meu pranto…………cerveja doce a ela
à santa Inana………… um “Salve” saudarei

Enheduana, como nos diz Scandolara, não deve ter sido seu nome de nascença, mas um apelido adquirido em função de seu ofício sacerdotal: en, hedu e ana são termos que significam respectivamente “sacerdotisa”, “adorno” e “do céu”. Essa mulher teve um papel importante para o sistema religioso dessa “terra entre rios”, relacionando divindades semíticas e sumérias, línguas e rituais; além do louvor a Inana, compilou mais de quarenta hinos dedicados a outros deuses mesopotâmicos, promovendo o sincretismo e entrelaçando as esferas do mágico-religioso e do político. Representou, de fato, uma figura-chave para o império acadiano, sobretudo depois que seu pai, o rei Sargão, decidiu nomeá-la sacerdotisa em Ur — que era então uma cidade suméria —, reforçando assim o próprio projeto de expandir e unificar seus domínios.

Devotada ao culto de Nana, a sacerdotisa relata ter se dirigido a esse deus para receber proteção quando foi condenada ao exílio; suas preces não são atendidas e assim é convocada Inana, que, ouvindo as súplicas de Enheduana, permite seu retorno à cidade e sua volta ao poder. Nin-me-shara, conhecido também como “A exaltação de Inana”, é um hino de devoção, uma oferenda de voz e corpo que a sacerdotisa faz à deusa, louvando seus múltiplos poderes em toda sua doçura e terribilidade.

Esses versos nos fazem vislumbrar um mundo extremamente distante, que mistura o mágico e o religioso, em que a arte resguarda o sagrado. Todas as manifestações da experiência remetem ao poder da divindade, que se por um lado é capaz de acolher as preces e consolar, por outro castiga e apavora. As palavras “temor e tremor” que aparecem na tradução, memória bíblica aos nossos ouvidos, revelam uma entrega completa a esse universo oculto:

e quando a humanidade……………… vem a ti
em temor e tremor………… por teu relume tempestuoso
assim recebes………… a paga devida

cantando um lamento………… por ti pranteia
por ti cruzam o caminho…………………… da casa dos suspiros

“A descida de Inana ao mundo dos mortos”, segundo poema do livro, vertido para o português por Adriano Scandolara, é um texto sumério cuja autoria permanece anônima, em que são apresentadas as vicissitudes de Inana, sua viagem no subsolo infernal, a morte que lhe é infligida por mão da irmã Ereshkigal e seu retorno à vida.

Ambas as narrativas celebram a deusa, porém existe uma importante diferença, porque o segundo poema não constitui um hino de exaltação, mas o relato de uma viagem ao reino dos mortos, em que Inana é representada em seu poder — vencer o abismo e a morte torna seus dons ainda mais valiosos —, mas também em sua fraqueza, entregue às vontades dos deuses maiores.

Como sugerem também outras tradições textuais — basta pensar nas figuras de Orfeu, Eneias e Dante —, a viagem ao além-túmulo marca a necessidade de superar uma prova, conquistar um objetivo expandindo as próprias virtudes; isso acontece também no caso de Inana, porque é só enfrentando o perigo e a morte que poderá renascer ainda mais potente.

Inana precipitou-se do céu e da terra,……… descendo ao abismo.
[…]
Abandonou o sacerdócio e ministério, ………descendo ao abismo,
abandonou Unug, em E-ana,……………………. descendo ao abismo,
abandonou E-mush-kalama, em Bad-tibira, descendo ao abismo,
abandonou Giguna, em Zabalam,…………….. descendo ao abismo,
abandonou E-shara, em Adab, ………………….descendo ao abismo,
[…]
Abandonou E-Ulmash, em Acade, …………….descendo ao abismo.

As fórmulas repetidas escandem a queda da deusa nos infernos, convocando a presença física de quem pronuncia e de quem escuta. As repetições são um componente fundamental da prática ritualística — nessa cultura, como também na maioria dos cultos religiosos —, porque desenham um percurso que pode ser facilmente acompanhado, no qual a recorrência de elementos conhecidos intensifica a potência da prece.

Inana veste os sete dons, mas logo é obrigada a se desfazer de cada um deles, perdendo seu aspecto invencível e grandioso, enfrentando as ameaças sem a capacidade de se defender. Tornada quase humana, vulnerável e desprovida de seus recursos divinos, Inana se dirige a Ninshubur, sua cortesã, para que suas súplicas sejam levadas aos deuses maiores:

Agora devo……… descer ao abismo
agora, quando.. chegar ao abismo,
vai, lança nas ruínas……… um lamento por mim.
Vai, bate no sacrário ………o tambor por mim.
Vai, faz na casa dos deuses……… vigílias por mim.
Carpe teu rosto,……………… carpe o nariz,
carpe, em público, ………….tuas orelhas,
carpe as coxas……………… sem que vejam.
Como quem nada possui, ………………veste um único andrajo,
e pisa sozinha ………em Ekur, casa de Enlil.

A introdução e as notas que precedem e acompanham os textos traduzidos são fundamentais para entender a natureza dos poemas, suas diversas estruturas e funções, e também para compreender o processo tradutório e suas dificuldades. Nesse caso, trata-se de textos milenares que nasceram dentro de uma língua completamente estranha à nossa; além da distância temporal e cultural, devem ser levadas em conta as especificidades de ambos os sistemas linguísticos, o da língua de partida e o da língua de chegada.

Atestado já no final do 4º milênio a.C., o sumério foi utilizado durante um período longuíssimo, e, mesmo quando o acadiano começou a substituí-lo na fala, sobreviveu como língua culta, usado na liturgia e nas composições escritas. O sumério é conciso, aglutinante, marcado pela presença de palavras monossilábicas e dissilábicas, que em muitos casos são homófonas; não é possível saber qual era a pronúncia desses pequenos núcleos linguísticos homófonos, mas se supõe que se tratasse de uma língua tonal, como é, por exemplo, o mandarim. O português tem outras características: não conhece o mecanismo aglutinante, tende à extensão, incluindo palavras que contam um número variável de sílabas e não muitos casos de homofonia; quanto à tonalidade, não se trata de um aspecto relevante para a definição do léxico, mas apenas para a prosódia.

Essa edição bilíngue dá aos leitores e às leitoras a oportunidade de se aproximar da música original dos poemas, oferecendo não apenas uma transmissão de sentido, mas uma tradução poética, que, além de seus significados, é capaz de restituir para a nossa língua os aspectos formais da poesia. Estrutura do verso, som e ritmo determinam a existência de qualquer poema, expressando e dando vida ao sentido, e ainda mais no caso dessas composições sagradas, que têm suas raízes na oralidade, sendo pensadas em primeiro lugar para o canto e a escuta, e não para a leitura.

Se o monte não te louva……… maldito fica o grau de Ezina
os seus portais ………tu transformas em cinzas

ali o sangue segue em rios……………… o povo passa sede
entrega de bom grado……… seus combatentes

desmonta de bom grado ………………seus regimentos
oferta de bom grado ………….seus fortes num desfile

a tormenta invadiu as ….….danças da cidade
que entrega os jovens todos……… como teus prisioneiros

A sonoridade é funcional ao poema, e é pelo som e pela vibração do corpo que se estabelece o vínculo com o divino. “E ali o sangue segue em rios o povo passa sede”, verso desse último trecho, e “feito o ataque da tormenta tu atacas/ no troar do trovão tu atroas”, ou ainda “o mel da minha voz é um babélico fel”, versos de outros fragmentos do texto, são um exemplo de como o aspecto sonoro é imprescindível para uma boa tradução: as palavras traçam um caminho ritmado que permite à linguagem sair do mero aspecto comunicativo para expressar o que move o poema.

Na segunda composição, o mecanismo repetitivo é recorrente, tornando a percepção do som ainda mais marcada: os versos “Carpe teu rosto, carpe o nariz,/ carpe, em público, tuas orelhas,/ carpe as coxas sem que vejam./ Como quem nada possui, veste um único andrajo,/ e pisa sozinha em Ekur, casa de Enlil” mostram como é possível criar uma música a partir da repetição, alimentando-a também das correspondências sonoras (nesse caso, “orelhas”/“vejam”; “nariz”/“Enlil”).

A poesia é sempre corpo, e, mesmo que as obras poéticas apareçam na forma do texto escrito e sejam lidas silenciosamente, não podemos esquecer que compor, ler e ouvir são atos físicos. A tradução dos versos de Enheduana ressalta esse aspecto, associando a criação do hino a um parto:

plena e replena pari a canção……… por ti senhora excelsa
o que eu te recitei ………à meia-noite
repetirá o cantor ……….ao meio dia

“A exaltação de Inana” e “A descida de Inana ao mundo dos mortos” são narrativas que mesclam fugaz e eterno, corpo e prece, em que a vida e a morte constituem o sagrado, força que a nossa civilização teme e rejeita, percebendo a potência do que vivifica e desestrutura. O sagrado foi cada vez mais substituído por simulacros que têm a função de legitimar o poder e permitir a manutenção da ordem; mesmo assim, permanece, irrompendo, atávico e violento, na linearidade da história, e interrogando os fundamentos da nossa época.

Rastros desse elemento arcaico que funde poesia, práticas religiosas, magia, aspectos terrestres e celestes sobrevivem em nosso mundo, vestindo diversas formas: o sonho, a visão, a espiritualidade, o vínculo com a natureza, o amor, a arte, as pulsões. Esses mistérios falam uma linguagem da qual nos aproximamos por meio da intuição, mas que não somos capazes de entender em sua complexidade: não há espaço para o sagrado em um mundo em busca de progresso. Os poemas para Inana, além de desvendarem um capítulo pouco conhecido da história poética, são um convite para pensar nesse elemento perdido, esquecido e reprimido, que porém não deixa de nos habitar.

 

Valentina Cantori é pesquisadora e tradutora. Doutora em Filologia e Linguística Românica pela Universidade de Macerata e pela Universidade Hebraica de Jerusalém, atualmente é pós-doutoranda da UFPR, pesquisando poesia italiana e tradução.


por Redação

Reunião de 41 crônicas que começaram a ser escritas no ano do golpe, em janeiro de 2016, e foram até a fatídica ascensão do bolsonarismo, em 2019. Diluindo as fronteiras entre o político e o poético, o autor, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, reflete sobre a deterioração político-econômica e a consolidação do neoliberalismo como norma no Brasil. Conforme nota o professor Alysson Leandro Mascaro no prefácio à obra, “a crise do capitalismo, o avanço da exploração da classe burguesa brasileira e internacional sobre o povo e a ação institucional da política, do judiciário, dos militares e da mídia” são alguns dos temas percorridos pelo autor para entender e analisar, pela chave literária, a guinada à direita da sociedade brasileira.

No romance de estreia da escritora paulista Camila Lourenço, acompanhamos as descobertas e reflexões de Pérola, em um fluxo de consciência que vai gradativamente desconstruindo os pressupostos que estruturam sua vida até ali. O ponto de virada da trajetória de Pérola, uma advogada bem-sucedida, é um livro erótico com o qual a presenteiam. A partir de sua leitura, ela vai mergulhando em seus desejos, sua libido e sua sexualidade, no que também está implicado o questionamento de seu noivado e da própria instituição casamento.

 


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