‘O globo de prata’, filme maldito perdido no cosmos

‘O globo de prata’, filme maldito perdido no cosmos
Iwona Bielska em cena de 'O globo de prata', filme de Andrzej Zulawski (Reprodução)

 

O cineasta polonês Andrzej Żuławski, falecido no ano passado, é conhecido por seu cinema iconoclasta que mistura psicologia e horror. A maioria dos espectadores que viu Possessão (1981) jamais esquecerá de Isabelle Adjani se debatendo na passagem do metrô escuro em Berlim, como que possuída.

Ao mesmo tempo, muitos não sabem que Żuławski era um leitor voraz, apaixonado por literatura, e que seu interesse por vudu e transes foi compensado pelos estudos em filosofia e ciências políticas na Sorbonne.

Żuławski não viveu em tempos propícios. A Polônia comunista era em grande medida um campo de batalha entre a fé católica entrincheirada e o regime comunista ateu – e o diretor não era popular entre nenhum dos dois, já que suas imagens provocativas  e sua visão do mal enraizado na psique humana contrariavam o olhar complacente da igreja sobre a humanidade.

Nascido em 1940, Żuławski era criança durante a Segunda Guerra Mundial, fato que marcou profundamente sua visão do mundo. Jovem demais para lutar, ele não compartilhou a visão heroica do grande cineasta polonês, Andrzej Wajda (também morto no ano passado). Żuławski lembraria que seus pais – ambos militantes na resistência – precisavam deixá-lo em casa sozinho por muitas horas. Da guerra, também se lembrou da fome e do horror absoluto.

Talvez por esta razão tenha se interessado eventualmente por O globo de prata, trilogia épica escrita por seu tio-avô em 1903 sobre um grupo de cientistas e exploradores espaciais que fogem da Terra em busca de um novo planeta.

“O romance mais pessimista que já li na vida”, descreveu. O livro pertencia à biblioteca familiar, mas por muito tempo o jovem diretor o tratava como mera raridade. No final, sentiu-se impactado por trechos que lhe pareceram surrealistas.

Mas o cineasta mantinha uma relação complexa com o surrealismo. Por um lado, não queria que o público pensasse que seu primeiro filme se enquadrava naquela abordagem – achou que havia captado a realidade da guerra com todo seu horror indizível, a sensação de ver o mundo se desintegrar a cada dia, hora, minuto.

Por outro, o surrealismo o fascinava – amava obras de Otto Dix e George Grosz, que misturavam as duras realidades de uma Berlim pós-guerra com elementos fantásticos. Foi essa mistura entre real e fantástico (ou grotesco) a qual Żuławski aspirava em seus filmes.

Encontrou, assim, uma maneira de capturar a guerra e a fragmentação da psique humana – a ansiedade, o choque, o medo. Em O globo de prata, os momentos surrealistas estão cheios de figurinos macabros, misteriosas cenas subterrâneas e movimentos de câmera vertiginosos. Às vezes é como se todo o planeta estivesse girando, lançando-nos numa vertigem – e como as personagens, ficamos sem fôlego.

De certa forma, a vida no novo planeta é um rico melodrama, com conquistas de novos territórios, ressentimentos, intrigas e barbaridades. Enquanto o estilo literário de Jerzy Żuławski é simples e accessível, o de Andzej é o oposto. É pura exuberância.


ELA BITTENCOURT é crítica de cinema e curadora da mostra Cinema em êxtase: os filmes de Zulawski, em cartaz no CineSesc até 10/10

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