O cinema subversivo de Marguerite Duras

O cinema subversivo de Marguerite Duras
Marguerite Duras: escritora e cineasta afirmou experiência criativa que prima pela liberdade de expressão (Foto: Reprodução)

 

A intensa vida cultural de Marguerite Duras, escritora nascida na antiga colônia francesa da Indochina, atravessou o século 20. Além da obra literária, sua produção envolve crônicas para o jornal Libération, peças de teatro, filmes, entrevistas e um ensaio para a revista Cahiers du cinema. Mais conhecida no Brasil como autora de O amante (1984), a escritora reprovava com frequência as adaptações cinematográficas de sua obra.

Foi esse olhar crítico e obsessivo que a levou a praticar seu próprio cinema, bastante apegado ao texto. Sua lenta – mas cautelosa – transição da escrita para a tela se dá no final dos anos 1950, quando o cineasta Alain Resnais a convida para escrever os diálogos de Hiroshima, meu amor (1959).

O primeiro filme dirigido por Duras, La musica, é realizado no fim dos anos 1960. Àquela altura, a autora havia vendido ao cineasta René Clement os direitos autorais do livro Barragem contra o Pacífico (1950), lançado em 1956, e a Peter Brooke os direitos de Moderato cantabile (1958), lançado em 1960.  Ambas as adaptações foram consideradas um fiasco pela autora.

Duras também não reconheceu seu livro O amante na adaptação homônima de Jean-Jacques Annaud, de 1992. Dessa vez, decide dar uma resposta não fazendo ou propondo um filme, mas publicando um novo livro: O amante da China do Norte.

Um cinema subversivo

Há uma tendência da crítica que ainda insiste em associar o cinema de Marguerite Duras ao Nouveau Roman, movimento literário ligado ao escritor e cineasta Alain Robbe-Grillet.

Essa categorização, que rotula os filmes de Duras como “cinema literário”, resultou em desavenças com Grillet, uma vez que a pecha incomodava a escritora e cineasta. Duras não apenas se opunha a categorias como subvertia qualquer gênero tanto na literatura, quanto  no cinema.

Phillippe Azoury, crítico da Cahiers du cinema, observou que embora o cinema de Duras fosse próximo ao de cineastas como Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub, Jean Eustache, Chantal Akerman ou Phillipe Garrel, ele não estabelece nenhum diálogo com o trabalho desses autores.

 

Praticando um cinema que
não se enquadra em nenhum
movimento cultural da sua
época, Duras se esforçou
para afirmar uma experiência
criativa que prima pela
liberdade de expressão.

 

 

Valendo-se de uma voz em off – a voz da escritora – e se aproximando mais do cinema experimental ou mesmo do cinema de vanguarda, sua obra cinematográfica resiste a toda classificação.

Uma característica marcante é justamente a relação entre imagem e palavra – que, aparentemente desconexas, estimulam a imaginação do espectador. Essa relação intermídia é relevante e se inscreve na gênese dos filmes nos quais o processo criativo da autora é determinado pela fronteira tênue entre a literatura, o teatro, cinema e a música.

Os arquivos de Marguerite Duras que podem ser consultados no Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC) testemunham esse processo criativo, rico e fragmentado, que busca referências e dialoga para além da literatura.

Através deles sabemos, por exemplo, que o que motivou a criação do filme La femme du Gange (1974) foi um blues que daria nome à primeira versão da música Blue moon, imortalizada nas vozes de Billie Holiday e Frank Sinatra. Basta se interessar por India Song (texto teatro filme), de 1975, ou por Le camion, de 1977, para se deparar com o aspecto híbrido da obra de Duras, imbricada de traços do texto literário, cinematográfico e cênico.

Em 1979, a produção da cineasta está a pleno vapor, e ela realiza vários curtas-metragens. Em Mãos negativas, enquanto a câmera em travelling percorre o centro de Paris de madrugada até o amanhecer, a voz em off de Duras diz um texto poético. Eis a maneira de subverter a linguagem cinematográfica negligenciando o roteiro. Esse procedimento mostra uma criação fílmica inteiramente mesclada e comprometida com o processo criativo literário.

Além disso, há uma transgressão na verticalidade das etapas de produção de um filme. Se o filme de cinema convencional obedece às etapas que vão do roteiro à pós-produção, Duras acaba por dispersar esse processo. Em Les mains négatives (1979), por exemplo, a diretora e sua equipe circulam pela cidade de Paris fazendo tomadas externas antes mesmo de definir o roteiro.

Mas ao considerar as cenas filmadas um fiasco, ela decide fazer o que chama de “desastre do filme”, ou seja, os atores são filmados na preparação, na maquiagem, mas sem jamais encenarem. Le camion é outro exemplo. É evidente que no cinema o roteiro precede a realização do filme, mas aqui a encenação da leitura do roteiro feita por Duras e Gérard Depardieu se torna o próprio filme, que conta a história de uma mulher que pede carona na estrada.

 

Quando resiste ao roteiro,
Duras renuncia à padronização
da indústria do cinema, mas
também à sua especificidade e
às regulações do olhar impostas
pelas convenções cinematográficas.

 

 

Seus curtas-metragens dos anos 1970 são exemplos icônicos. Consequentemente, a diretora exprime,  repetidas vezes, uma condescendência ao “espectador comum”, influenciado pelo cinema norte-americano, que ela considera estar persuadido pelas facilidades do espetáculo.

Apostando na percepção do seu fiel leitor-espectador, Duras realiza seu filme mais ousado: L’Homme atlantique (1981). Nele, planos do mar de Trouville são alternados com 25 minutos de tela escura, sem imagem, quando o espectador escuta o belíssimo texto feito para o filme. Nesse procedimento, percebe-se a renúncia ao princípio do cinema, ou seja, a imagem em movimento, enquanto o texto permanece literário, poético. É para esse espectador “emancipado”, como concebe Jacques Rancière, que Duras trabalha o dispositivo cinematográfico, para que ele não deslize para dentro da ilusão do jogo de “transparência” do cinema comercial que ela quer combater.

Para o crítico francês Jean Cléder, o desprezo de Duras pelo cinema comercial é explicado no nível político, porque ela acusa o espetáculo político, capitalista, de alienar o espectador e de impedi-lo de ter acesso ao imaginário. O período mais prolífico da produção cinematográfica de Marguerite Duras coincide com o abundante cinema experimental da França nos anos 1970.

Os festivais de cinema independente constituem por excelência o local de recepção dos filmes produzidos com poucos recursos e à margem do grande cinema. Concebidos como eventos alternativos em comparação com os festivais para o público em geral, eles também se tornaram locais de troca e discussão frequentados por cineastas que se opõem ao cinema “quantitativo”, para usar o termo usado por Duras e que designa cinema comercial. Jean-Luc Godard compartilhava com Duras lugar nesses festivais.

Em todos os curtas de Duras, tais quais Césarée (1979), Aurelia Steiner Melbourne (1979) e Aurelia Steiner Vancouver ((1979), há um desvio, para não dizer uma dissociação – entre imagem e texto. Entretanto, nesse desvio aparente, no lugar de ilustrar os diálogos ou os monólogos, o conteúdo visual do filme evoca outras significações. Caberá à imaginação do espectador de reconstituí-lo.

Luciene Guimarães de Oliveira é doutora em Estudos cinematográficos pela Université Laval (Canada). Tradutora. Pesquisou a obra de Marguerite Duras nos arquivos do IMEC (França), em 2019.


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