Novos fôlegos

Novos fôlegos

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2021 é “memória”


O filme alemão A onda, de 2008, teve um número surpreendente de espectadores brasileiros, considerando que se trata de uma obra alheia ao universo cinematográfico estadunidense. Eu me lembro de debatê-lo com colegas e amigos, e de como invariavelmente falávamos sobre o nazismo, regimes ditatoriais e temas relacionados à psicologia humana, mas nunca encontrei ninguém com o mesmo encantamento pela cena em que os estudantes estão na praia, contando histórias de terror, quando um deles comenta sobre uma lenda na qual os corpos de certos afogados sempre voltavam para o mesmo lugar.

De fato, os corpos sempre voltam para o mesmo lugar. A História é tão redonda quanto a Terra – que, no máximo, é um geoide –, repetindo-se em ciclos que sequer são percebidos pelas gerações que os perpetuam. E por quê? Bem, histórias são, de modo geral, desprezadas. Não que ninguém desvalorize a sua própria. Pelo contrário, nossos enredos e conflitos são protegidos com ferocidade, sempre preparados para serem disparados em resposta a acusações ou comentários insensíveis. Como de hábito, porém, valorizar o alheio é mais difícil, e, conforme o tempo devora as vítimas como um Cronos impiedoso, a importância da narrativa alheia perde a força sob a força dos conflitos recentes, mais imediatos. E é na noção de que o passado é uma trama aparte, um bordado esquecido pelos novos dedos das Moiras, que perpetuamos conflitos e problemas cujos enredos são consequência daquilo que esquecemos.

Voltando ao filme, ele relata como ideias que imaginávamos estar muito bem decompostas sob camadas de terra podem ressurgir com um novo fôlego, basta encontrarem onde fincar os pés. O passado sempre tem formas peculiares de nos assombrar e ressurge com a voz mais alta quando é ignorado. Gabriel García Márquez bem expressou em Cem anos de solidão como a memória das nações pode ser finda, e quais as consequências dos massacres que esquecemos, dos conselhos que se perdem, de tudo o que ignoramos – ao contrário de Macondo, porém, nós temos uma segunda chance sobre a terra. Bem mais do que isso, talvez.

Não somos seres flutuantes em universos abstratos de linhas morais sempre definidas, da mesma maneira como não vivemos em países isolados em tempo e espaço. Ignorar vergonhas não faz com que suas histórias se desmantelem ou percam a força de suas raízes no presente, assim como não lhes faz nenhum favor quem tenta expurgá-las à força e obrigá-las ao esquecimento; a ignorância e a violência são aliadas, não oponentes. Ainda que o diálogo reavive feridas, ao menos saberemos como evitar mais cicatrizes.

O fato é que o tempo nos apaga e nos devora, o nosso desaparecimento é inevitável, mas o desenho de nossas vidas continua a se perpetuar, e se não ensinarmos como identificar as falhas e acertos que nos constituíram, deixaremos apenas um intricado caótico de fios enovelados que poucos terão o conhecimento – ou o interesse – de interpretar, com os mesmos cadáveres flutuando na praia.

 

Giovanna Barsotti, 22, é tradutora e revisora e
mora em São Paulo. Gosta de passar as madrugadas
lendo e escrevendo. Tem um blog chamado Affair
Literário, onde escreve sobre literatura.

 

Deixe o seu comentário

TV Cult