Nem para todos os males há cura

Nem para todos os males há cura

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


 

Segundo Thaís Souza e Acioly Lacerda, no texto “Depressão ao longo da história” (Depressão: Teoria e Clínica, 2013), as doenças mentais existem desde a Antiguidade, e a psiquiatria, como especialidade médica, consolidou-se no século 19. Porém, somente a partir da década de 1980 houve um grande desenvolvimento da neurociência e um progresso da investigação e do tratamento das síndromes psicopatológicas. O estudo da biologia da mente alterou substancialmente o conceito de doença mental e a consequente intervenção sobre ela.

O relato a seguir é baseado em fatos reais e foi escrito de acordo com o depoimento de uma mulher leiga na área da saúde, mas com uma história impactante de doenças psiquiátricas na sua família de classe média baixa de uma cidade do interior de Minas Gerais. Os nomes das personagens foram omitidos para preservar-lhes a identidade.

 

Século 20.

Década de 1970.

Uma família assolada por doenças psiquiátricas sem diagnóstico preciso, sem tratamento eficaz e sem cura.

Um pai, que deveria amparar e proteger, encontrava-se mais desamparado e mais desprotegido do que todos.

Uma mãe e esposa dedicada trabalhava de sol a sol, atrás de uma máquina de costura, para minimizar os efeitos nocivos da desorganização financeira que abalava o lar devastado por doenças psiquiátricas sem diagnóstico preciso, sem tratamento eficaz e sem cura.

Duas filhas, ainda crianças, exemplos de meninas, lutavam contra toda a angústia de um pai ausente que invertera os papéis e precisava ser cuidado.

Muitos finais de semana foram dispendidos pela família em uma clínica psiquiátrica na qual o homem se internava em busca de um pouco de paz. Em busca de um diagnóstico preciso, de um tratamento eficaz e de uma cura. Não se tem ideia do que se passava lá dentro. No entanto, sabe-se que o homem sempre saía melhor. Parece que encontrava um pouco da paz que ia buscar. Voltava para casa, onde permanecia, por pouco tempo, até a próxima crise.

As enfermidades não eram nomeadas claramente, embora já existissem termos que as designassem. O pai dizia que era nervoso. Usava medicamentos que surtiam pouco ou quase nenhum efeito. As crianças sentiam-se torturadas psicologicamente a cada nova fase das doenças.

 

Século 21.

Década de 2020.

O pai não sobreviveu a tantos transtornos sem diagnóstico preciso, sem tratamento eficaz e sem cura. Foi-se novo. Resistiu bravamente o quanto pode. Se a cabeça não funciona bem, como comandar o restante do corpo? Debilitado, sucumbiu a um derrame que o jogou na cama antes de partir.

A mãe ainda viveu muito tempo. Conseguiu recuperar um pouco de sua juventude enterrada nos anos de luta. Deprimiu-se no final da vida. Efeito rebote talvez.

As filhas estudaram, formaram-se, trabalharam, constituíram família e hoje, aposentadas, reinventam-se em novas profissões. Não saíram totalmente incólumes daquela vivência pesada da infância, no entanto, muito menos maltratadas do que se poderia prever. Apegam-se à grande massa humana na qual ninguém é normal e conseguem levar a vida com certa leveza. Não herdaram os grandes males do pai.

Cinquenta anos depois, as doenças psiquiátricas continuam sem cura, mas agora têm diagnóstico preciso e tratamento eficaz. Se aquele homem vivesse nos dias atuais, talvez tivesse levado uma vida quase normal. Com alguns altos e baixos — mais altos do que baixos. Sob o poder de medicamentos eficientes, estabilizar-se-ia e não teria seu direito à vida negado. Protegendo-se a si mesmo, conseguiria proteger a família.

Pensa-se que somente a cura é a solução. Nem sempre é, pois nem sempre é possível. Na maioria das vezes, um diagnóstico preciso e um tratamento eficaz já funcionam como uma cura. Se aquele pai pudesse ter se beneficiado dos avanços recentes da psiquiatria e da psicologia, dir-se-ia curado. Poderia ter sido pai. “As moléstias inominadas que o consumiram, na época, ganharam uma cura remissiva, se é que existe esta expressão” — palavras da filha mais velha.

Que este relato sirva de alerta para que se busquem sempre diagnósticos precisos e tratamentos eficazes e, através deles, possa se esperar pela cura com dignidade.

 

 

Déa Araujo, 60, é de Juiz de Fora, Mina Gerais.
Foi dentista por 35 anos e hoje estuda Letras na UFJF.
Considera que escrever foi um renascimento em vida.

 

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