A negritude nem sempre esteve aqui: sobre a descoberta que mudou minha vida

A negritude nem sempre esteve aqui: sobre a descoberta que mudou minha vida

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de novembro de 2021 é “a arte e a educação como meios para combater o racismo”


Impossível dizer que fui surpreendida, mas preciso afirmar: eu me descobri negra. Já testemunhei pessoas ironizando essa ideia. Defendem ser impossível não se saber negra em um país racista como o Brasil. Entendo a afirmação, porém, ser negra em ambiente negro é uma coisa; em branco, outra. Moradora do Acre, estado expressivamente autoclassificado negro (74,1% pardo e 5,9% preto, segundo a PNAD Contínua 2019), estudante de escola pública, habitante de bairros periféricos, pertencente a uma família eminentemente negra jamais autorreconhecida como tal, tive o processo de construção identitária racial retardado. Afinal, identidade se constrói no conflito, no contato com o outro, na diferença.

Enquanto eu cursava o primeiro ano escolar, o ensino de história e cultura afro-brasileira foi tornado obrigatório por meio da lei 10.639. Apesar disso, as instituições nas quais estudei não me ofereceram mecanismos para enxergar beleza nas negritudes, afastando de mim qualquer chance de identificação enquanto pessoa negra. Relegada ao 20 de novembro, a abordagem das temáticas étnico-raciais se apresentava sempre da mesma forma: capoeira, exposição com artistas negras/os famosas/os, referências a negras/os escravizadas/os. A data tornou-se o revés do propósito de sua criação.

O auxílio para enxergar beleza no cabelo cacheado e volumoso chegou a mim por meio das blogueiras que despontaram somente quando eu cursava o ensino médio. A escola foi o espaço onde recebi as primeiras acusações de inadequação por conta da mudança no olhar que lançava sobre o meu próprio corpo e no modo como me apresentava. “Levou um choque?”, “Tomou um susto?”, “Brigou com o pente?” foram algumas das frases que passei a ouvir por onde passava. Diariamente me lembravam: a assunção daquela característica física não estava de acordo com o que esperavam de mim.

O ambiente escolar envolve mais do que os conteúdos abordados nas aulas. Tem a ver, sobretudo, com relações humanas. A pedagogia intraescolar e extra sala de aula foi fundamental no processo de me situar enquanto pessoa negra. Ouvia de professoras que usar meu cabelo cacheado e volumoso demonstrava personalidade forte. (Hoje, me questiono: personalidade forte por qual motivo exatamente? Para aguentar os comentários, olhares e risadas debochadas? Por contrariar o padrão que de mim é esperado?) Recebia elogios de colegas que me confidenciavam não ter coragem para deixar seu cabelo natural. (Veja só, não alisar o cabelo, deixá-lo solto e volumoso exigia coragem.) Congregando reações boas e ruins, dolorosas e congratulatórias, a escola me conduziu pelo caminho da descoberta da minha negritude. Posso dizer, então, que a dimensão corpórea da minha negritude me foi apresentada por meio do cabelo.

Tal descoberta se deu também na produção de inúmeros produtos jornalísticos feitos por mim durante a faculdade. O trato com os cabelos e o processo de transição capilar vivenciados por negras/os que fazem as pazes com as madeixas não sem dor foi tema de trabalhos feitos por mim, em parceria com colegas. A educação adquiriu, naquele contexto, caráter de autonomia. Não estava ali produzindo simplesmente pela nota ou pela aprovação: me procurava, queria construir minha negritude – a negritude de uma mulher brasileira, amazônida, acreana, rio-branquense, filha da classe trabalhadora que se aliena de sua própria condição racial, embora se saiba não branca – a partir do meu olhar sobre outras/os.

O acesso à arte foi crucial nesse processo. O rap que embala minha vida desde a primeira infância foi sendo atribuído de sentidos outros. Sentidos que me mostravam quem eu era e quem eu tinha o direito de querer ser. As letras feitas de poesia crua mais-que-me-atravessavam, me constituíam enquanto sujeito. Me interpelavam com suas provocações e histórias narradas detalhadamente. Foi com o rap dos Racionais MCs que entendi que negros tem que ser duas vezes melhor — na condição de mulher negra, eu teria que ser três? Com Emicida aprendi o quanto isso é desumano.

A arte tem seu jeito singular de dizer. Suspeito que por não fazer a tola separação razão/emoção. Assume que sentir é pensar; que o pensar se constitui pelo sentir. O processo não é condicionado por hierarquias dessas dimensões. Com a mesma intensidade que me lembra das dores que me constituem enquanto sujeito que habita esse mundo do modo como ele ainda se apresenta, me salva delas todas, mesmo que por instantes. Em minha experiência, arte e educação foram instrumentos fundamentais para a construção de uma identidade negra positiva. Ajudar pessoas negras a enxergarem beleza em seus corpos e potencial em suas existências é, sem dúvidas, uma forma de enfrentar o racismo. Mas não menos importante é que brancas/os sejam capazes de, também por meio da arte e da educação, compreender seu lugar na engrenagem racista que lhes brinda com tantas benesses e se responsabilizar ativamente pelo fim do racismo.

Jaine Araújo, 25, mora em Rio Branco, AC. É formada em
jornalismo pela Ufac, onde cursa mestrado em Letras. Atualmente,
desenvolve pesquisa sobre representações de mulheres negras no
jornalismo.

 

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