‘Não se democratiza o conhecimento falando empolado e discutindo teorias herméticas’

‘Não se democratiza o conhecimento falando empolado e discutindo teorias herméticas’

A historiadora Mary Del Priore (Foto: Divulgação)

Paulo Henrique Pompermaier

Aproximar-se do passado, descrever seus aspectos acanhados, vislumbrar traços contínuos da cultura brasileira. Esse é o objetivo da historiadora Mary Del Priore, que busca no livro Império, lançado nesta semana, levar o leitor a desvelar diversos aspectos delicados do período imperial brasileiro. A arquitetura da época, as modalidades de lazer, hábitos alimentares, de fala e vestimentas, mudanças no casamento, nos costumes privados e o surgimento das cidades são alguns dos aspectos esquadrinhados pela professora.

Segundo Del Priore, seu objetivo é “convidar o leitor a um passeio no tempo. A conhecer como os nosso antepassados lutaram, sobreviveram e sobretudo criaram modos de vida”. Império é o segundo volume da coleção Histórias da gente brasileira. A autora de Histórias íntimas (2011) acredita que por meio do estudo das coisas miúdas, dos gestos, das crenças, dos objetos, é possível resgatar imagens que ajudam a compreender de onde veio o povo brasileiro.

Pós-doutorada pela École dês hautes études en sciences sociales de Paris, na França, Mary Del Priore diz não ter pretensão de interpretar a história, mas sim oferecer descrições para “mostrar para o grande público, com uma linguagem fácil e sem nenhuma preocupação teórica, como éramos”. Autora de outros 45 livros, muitos sobre a mulher na história brasileira, Del Priore encontra seus assuntos no contato direto com arquivos e documentos, “a cozinha ou oficina onde se aprende a fazer história”, como os denomina.

“Eles podem ser de múltiplas origens: palavras, paisagens, imagens, manuscritos e impressos, enfim, um mundo onde lemos e ouvimos conflitos, paixões, confissões, o relato das vidas humanas com sua grandeza ou miséria.” Leia abaixo trechos da entrevista concedida à CULT.

CULT – Na década de 1920 já havia um vislumbre de certa história cultural com a Escola dos Anais. Qual é a atualidade dessa prática historiográfica atualmente?

Mary del Priore – A preocupação com estudos sobre cultura – essa palavra-mala onde tudo cabe – é mais antiga. Em 1871, o antropólogo britânico Edward B. Tylor definia a cultura como um conjunto de hábitos adquiridos pelos homens em sociedade. Nos anos 1930, contra o evolucionismo, Franz Boas vai propor o relativismo. Em 1958, Lévi-Strauss  sugere que as produções culturais, tão diversas quanto possível, são fruto de estruturas mentais universais. Em 1970, Fredrik Barth interpreta “cultura” como um instrumento de estratégia dos diferentes atores sociais e a identidade passa a substituir a noção de cultura. Como se vê, as palavras e os conceitos são modelados pelo seu tempo. O que fez a Escola dos Anais? Abriu a porta da disciplina histórica para a antropologia. E o resultado foi a ampliação dos campos de estudo do historiador: práticas sexuais, alimentares, famílias, infância, mulheres, vida cotidiana tudo aumentou o cardápio de pesquisas e estudos. Chamo a atenção para o fato de que, sem sabê-lo, Gilberto Freyre foi pioneiro neste tipo de abordagem entre nós. A partir dos anos 80, novas interpretações vieram irrigar o conceito e a “história cultural” passou a definir o estudo de como os atores históricos percebem e representam seu mundo e o mundo que os cerca. E de como se dá a propagação e apropriação do que pensam. Uma novidade? Não. O conceito de mentalidades, criado nos anos 1920 sugeria quase a mesma coisa. Como se vê, expressões da alma e do espírito, sensibilidades e emoções estão desde sempre na mira do historiador.

Há um perigo, como traçado por Hayden White ou Lawrence Stone, de a história se esfacelar em diversas pequenas histórias na modernidade? De a história perder sua finalidade narrativa?

Esse é um dos temas de reflexão mais controvertidos entre os historiadores. Mas seria possível analisar uma situação social ou econômica sem narrativa? Impossível. A questão me parece retórica e ganha fôlego num momento de todo tipo de incertezas. Hayden White considera a história um gênero  literário sem ambição de ser um discurso de verdade. Os historiadores que estudam a Shoa [o holocausto] e os campos de concentração reagiram com razão! O que sabemos também é que a história quantitativa, baseada em dados, curvas e números, de raiz marxista, não satisfaz. Contra ela, o grande epistemólogo Paul Veyne disse: “A história é um romance, porém, um romance verdadeiro”. O certo é que a história tem regras específicas: construção e tratamento de fontes documentais, critérios de verificação dos resultados, adequação entre o discurso e seu objeto. Respeitá-las é lei. Quanto ao estilo, cada um tem o seu e lembro que grandes escritores foram também grandes historiadores. Que o digam Tolstói, Balzac, Henry James, Euclides da Cunha e Machado de Assis ou os memorialistas brasileiros – assunto do terceiro volume da tetralogia – que fazem história sem o querer.

Como essas micro histórias ajudam a entender acontecimentos na esfera macroscópica?

“Small is beautiful” diriam alguns, ironizando o sucesso dos historiadores italianos. Mas a revolução da micro-história foi mirar a experiência dos atores históricos em lugar de seguir analisando estruturas familiares ou simbólicas, como estava na moda, nos anos 1960. A valorização das fontes documentais foi outro aspecto positivo dessa abordagem. O autor de maior sucesso entre nós foi o italiano Carlo Guinzburg que postula a reconstrução de relações, comportamentos e identidades coletivas ou individuais  por meio do estudo de “signos e sinais”, discretos e disseminados nos mais diversos documentos.  Os micro-historiadores – o que não sou – procuram integrar a história mais ampla ao indivíduo ou a um grupo por meio da análise de escalas. E sublinham que é no nível microscópico que, embora complexas, as relações são mais consistentes. Cada escala de análise revelaria uma organização particular do social. Um exemplo: o Giovanni Levi, ao estudar uma comunidade rural, estudou as formas de parentesco, o funcionamento do mercado, as formas de resistência ao mundo exterior. A moda foi tão forte nos anos 1990 que levou um dos maiores historiadores brasileiros, Evaldo Cabral de Mello, a zombar: “No Brasil usa-se a micro-história até para estudar escravidão em Conceição do Mato Dentro [cidade em Minas Gerais]”.

Como, por exemplo, elas explicam o conturbado cenário político, econômico e social que vivemos atualmente no Brasil?

Os meus trabalhos procuram focar as permanências: aquilo que muda muito devagar numa sociedade. A vantagem de uma tetralogia, que começa na Colônia e vai até os anos 2.000, é que podemos acompanhar como foram lentas as transformações na família patriarcal, na educação, na saúde, explicando a indigência na qual vivemos tais situações até hoje. Um exemplo: o mosquito da febre amarela tem mais de quinhentos anos entre nós. Mas revelam, também, aspectos positivos: a mobilidade social de pardos e mulatos foi enorme desde o século 18 e ela vai aumentando, junto com a mestiçagem da população. No século 19 vamos ter desde os ricos “barões de chocolate” como Gê Acayaba de Montezuma até inúmeros advogados, médicos, jornalistas negros e mulatos. No século 20, temos um presidente mulato, Afonso Pena, e intelectuais notáveis como Abdon Batista, Antonieta de Barros, Manuel Querino, Nina Rodrigues ou Mário de Andrade, entre tantos outros que circulavam com indiscutíveis competências na cena cultural. E isso é pouco estudado, pois se prefere o estudo das dicotomias: escravos e senhores ou patrões e empregados, binarismo tão redutores, tão simplificadores. A lentidão nas transformações joga luz, igualmente, sobre os momentos de ruptura: rebeliões, invenções, adaptações, sobretudo de uma parcela da população para quem a vida política é menos importante do que os mecanismos de sobrevivência, as crenças ou praticas cotidianas que se repetem, com pequenas alterações, há séculos.

Acredita que livros como os seus, que mostram pontos de vista inusitados da história brasileira, aproximam os leitores leigos da história brasileira?

Esse é o meu objetivo: contar e encantar. Tenho uma preocupação especial em dar ao meu texto cor, som, cheiro. Algo que Gilberto Freyre fez com maestria e que na época chamava-se “imagismo”. Escrever transportando o leitor através de imagens. Numa sociedade que as consome em profusão, tenho enorme prazer em tentar transportar meu leitor para tempos passados, onde ele possa ver, em detalhes, “como” foi. Sentir-se em meio aos fatos. Observar de perto os personagens que não são santos nem demônios, heróis ou vilões. Mas gente como a gente mergulhada em problemas de sobrevivência e tensões. Ora, sabemos que a escrita da história não é neutra. Ela tem um objetivo: o meu é de multiplicar o interesse pelo passado, pela memória, por nossa história que é riquíssima, complexa e apaixonante.

Como você encara “best-sellers historiográficos”? Acredita que, ao sair da linguagem acadêmica, tais livros perdem relevância ou seriedade?

O que quer dizer best-sellers historiográficos: 1808, de Laurentino Gomes? Esse, sim, vendeu um milhão de livros. Outros autores, notadamente jornalistas que escrevem sobre história, vendem bem menos exemplares. O que se sabe, é que existe um real e concreto interesse por história e pelo passado e um número enorme de leitores, que não são necessariamente historiadores, e que desejam conhecê-lo. Jornalistas prestaram um serviço inestimável oferecendo produtos de alta qualidade a esse público. Veja-se o que fazem Ruy Castro ou Jorge Caldeira . Ora, um dos deveres do historiador, além da pesquisa e do ensino, é a divulgação de conhecimentos. Não se democratiza o conhecimento falando empolado e discutindo teorias herméticas. Isso deixamos para as teses e trabalhos acadêmicos, muitas vezes compreensíveis somente mediante a leitura de uma bula. O leitor comum quer ter prazer na leitura e o livro de divulgação – como os que eu escrevo – tem a preocupação de tornar mais acessível, agradável e portanto democrático o conhecimento construído, porém, através da pesquisa séria. Tais obras certamente não são relevantes para a execução de uma tese. Mas elas ajudam a entender quem somos e por quê somos o que somos.

 

capa-mdp

 Histórias da gente brasileira – Império, Vol. 2
 Mary Del Priore
 Leya
R$: 59,90 – 520 págs.

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