Nada contra a liberdade individual. Tudo pelo bem comum.

Nada contra a liberdade individual. Tudo pelo bem comum.

No legado beneditino, as regras de vida liberam a inspiração para as necessárias transformações e adaptações aos novos tempos.

 

Não se pode deixar de reconhecer que grande foi a surpresa daqueles que, no dia 19 de abril, esperavam conhecer o nome do novo Papa e ficaram sabendo, contra fortes previsões em contrário, que o escolhido fora mesmo o Cardeal Ratzinger. Surpresa não menor causou também a anúncio do nome de Bento, escolhido pelo recém-eleito. Esse último fato suscitou logo um grande interesse em se conhecer as razões dessa escolha, bem como algo sobre a vida desse santo, sobre o qual muito pouco se sabia. Alguns dias depois, o próprio Papa esclarecia que escolhera esse nome recordando-se primeiramente da figura singela e simpática do papa Bento XV, que, por ocasião do início da Grande Guerra de 1914, fora tão marcado pelos sofrimentos, mas muito também se esforçara, junto aos governos dos países em luta, para que todos renunciassem à violência e procurassem chegar a um acordo de paz.

Alem disso, dizia o papa, São Bento fora declarado o patrono da Europa por Paulo VI, e entre os ensinamentos de sua Regra existia um que julgava de particular importância e atualidade, a saber, a centralidade na vida dos cristãos do amor à pessoa de Jesus Cristo, como Bento pede em sua obra: “nada antepor ao amor de Cristo”.

Bento – Sua vida

O que conhecemos da vida de São Bentonos foi transmitido por uma das obras literárias do papa São Gregório Magno  

Gregório escreveu, evidentemente, a vida de Bento utilizando-se de outra forma literária, bem diversa da que usamos hoje. Narrando acontecimentos que manifestavam as qualidades e virtudes pessoais do servo de Deus, procurava mostrar, ao mesmo tempo, de que maneira foi ele capaz de suportar múltiplos sofrimentos, provações e tentações apoiando-se na sua fé e na força que dela procede. Gregório desenvolve assim a sua narrativa, não considerando tanto as datas dos fatos nem mesmo os acontecimentos em si mesmos, mas sim os seus significados à luz da Fé e da Sabedoria divina. Em vista disso, os principais acontecimentos vão sendo apresentados e concatenados como experiências ao mesmo tempo humanas e divinas, nas quais se verifica uma verdadeira purificação interior do servo de Deus. Essas experiências, em que a fidelidade do homem responde aos dons de Deus, procuram descrever como que um processo progressivo de iniciação mística, isto é, de um verdadeiro encontro com Deus. É justamente nesta linha de leitura da vida de Bento que o papa se referiu aos sofrimentos do jovem monge como um caminho para a perfeição da sua maturidade espiritual:“Necessitamos de homens como Bento de Núrsia, que, em uma época de dissipação e decadência, penetrou na solidão mais profunda, conseguindo, depois de todas as purificações que teve de sofrer, levantar-se até a luz, regressar e fundar Monte Cassino, a cidade sobre o monte que, entre tantas ruínas, reuniu as forças com que formou um mundo novo”.

Sob esse aspecto, pode-se comparar a biografia de Bento escrita pelo papa São Gregório Magno com outras “vidas” mais antigas da literatura monástica. Aliás, o primeiro modelo foi, sem dúvida, a Vita Antonii ou seja, a vida de Santo Antão, escrita por Santo Atanásio, arcebispo de Alexandria (328). Nela, dizem os especialistas, “distinguem-se quatro etapas, progredindo sempre para uma mais profunda “interiorização” (tanto no deserto, como no interior do coração). Cada vez, um novo e corajoso despojamento é seguido por encarniçada resistência do maligno, por um novo socorro divino e, por fim, por uma maior irradiação espiritual.

Idêntico esquema de composição hagiográfica, a saber: progressão das etapas no caminho do deserto e maiores progressos espirituais, encontramos também  nas Homilias sobre o livro dos números, de Orígenes, na Vida de Moisés, de São Gregório de Nissa, e  também na Vida de São Martinho por Sulpício Severo.[1]

A Regra – Uma justificativa para hoje        

A chamada Regra dos monges (ou dos Mosteiros), também conhecida como Regula Benedicti, éa única obra conhecida de São Bento. Pode-se dizer que ela é o  testamento espiritual que Bento deixou como herança aos seus filhos e filhas. Embora tendo sido interpretada de maneiras diferentes, em diversos aspectos, no decurso da História, é a Regra, no entanto, um documento autêntico e fielmente transmitido, que tem sido responsável pela uniformidade dos princípios e a garantia de um estilo ou de uma forma de vida monástica denominada “beneditina”.

É importante notar ainda que, mesmo dentro dessa precariedade própria a um documento de épocas passadas, aberto a diferentes e possíveis interpretações, é a busca por uma observância mais fiel da Regra que, em diferentes épocas, tem sido o critério assumido para justificar um movimento de reforma por maior autenticidade na vida das comunidades monásticas beneditinas.

É evidente que, ainda dentro desse processo de reforma, buscava-se também uma sempre mais autêntica fidelidade aos valores evangélicos contidos na Regra, como fontes autênticas de inspirações para as necessárias transformações e adaptações aos novos tempos.

Deve-se reconhecer que, hoje , a palavra “Regra”, significando uma norma de vida, é bem pouco compreendida e, conseqüentemente, apreciada. Reagindo contra um excesso de autoritarismo e de imposições de regulamentos e regras de comportamentos nos processos educativos de épocas passadas, tanto nas escolas como também nos ambientes familiares, a cultura moderna opõe-se a todas as formas de imposição e valoriza, muitas vezes em excesso, a liberdade de pensamento, de opções, de julgamento e de ações. Não se pode deixar de lamentar os exageros de épocas passadas, mas também não se pode negar que reações excessivas, desprezando ou eliminado qualquer norma de conduta, podem impedir ou até destruir a consecução de uma existência pessoal plenificada ou mesmo de uma comunidade humana.

A lei não visa, em primeiro lugar, rejeitar a liberdade das pessoas, mas sim salvar justamente o bem comum de qualquer sociedade, bem como  incentivar a realização da própria pessoa humana. Nesse sentido, uma lei justa não se apresenta como imposição, e sim como a manifestação de um modo de agir, como um caminho, que em certos casos pode ser o único, para impedir a desgraça ou o fracasso. Por isso mesmo, existem normas que não necessitam ser formuladas por nenhuma autoridade para serem válidas, pois já são conhecidas e estão presentes nas próprias consciências das pessoas, tais como: “não deverás fazer aos outros o que não desejas que te façam; não matarás; não roubarás; não levantarás falsos testemunhos; não cobiçaras as coisas alheias”, e antes de qualquer outra: “amarás o seu Senhor teu Deus e ao teu irmão como a ti mesmo”.

Dentro desse ambiente bastante generalizado e adverso às leis e normas de conduta, aparece hoje um fato bastante curioso e significativo. Em não poucos grupos de trabalhos e até de empresas, começa-se a descobrir a sabedoria teórico-prática dos princípios e valores contidos na Regra de São Bento para a aplicação nos ambientes de trabalho, visando à melhoria do processo de liderança, do relacionamento interpessoal e o conseqüente aperfeiçoamento do sentido comunitário e da união do grupo de pessoas.[2] De modo semelhante, existem, hoje em dia, grupos de leigos católicos que, desejando viver uma vida comunitária autenticamente cristã, estão descobrindo na Regra de São Bento, com mais de quinze séculos de existência, os princípios e as observâncias básicas necessárias para a organização dessa experiência de vida comunitária. [3]

A Regra monástica — Alguns elementos de sua identidade espiritual

Quando se fala de regra e de normas dentro de uma experiência religiosa, deve-se reconhecer que há algo novo nas mesmas palavras. Nesse caso, a Regra não apenas mostra um bem necessário, mas ensina também como se deverá agir para se chegar até ele. Por isso mesmo, já no Antigo Testamento a palavra que para nós significa a “Lei” (Torah) significa realmente “Ensinamentos”. São os ensinamentos de Deus que nos revelam os caminhos que conduzem à Vida. E a palavra “mandamentos” (mitsvah) não pode ser entendida como geralmente acontece, como uma norma imposta a todos sob a ameaça de pecado e de morte. Os mitsvah são normas sim, mas como as faixas que marcam os limites de uma estrada, de um caminho, faixas que à noite aparecem iluminadas para que não haja o perigo de alguém as ultrapassar e perder-se fora do caminho certo. É indispensável recuperar o sentido dos “mandamentos” (também e sobretudo no Novo Testamento), pois não são “costumes” arcaicos impostos, que nos privam de nossa liberdade; ao contrário, são revelações de um caminho, dos únicos caminhos que podem nos salvar do abismo em que nos encontramos. Só poderemos entender a urgente atualidade dos mandamentos de Deus dentro do contexto em que nos foram entregues, isto é, o contexto do Encontro de amor de Deus com os homens, o mistério da Aliança. Esse Encontro da Aliança, realizado, mas prometido em plenitude para o futuro, nos é oferecido agora na nova Aliança de Jesus Cristo. As suas promessas de amor e de uma plenitude de vida em Deus realizadas no mistério da sua Páscoa, se tornarão presentes para nós se, além dos sacramentos, aceitarmos acolher, praticar e viver também os “caminhos dos seus mandamentos”. Então o Senhor realizará em nós as suas promessas, e essa experiência única de comunhão com o amor de Cristo, com a Vida de Deus, se constituirá para nós em verdadeira experiência mística.

É por esse motivo que a Regra de São Bento inicia muitos capítulos rememorando um mandamento do Evangelho. E os monges devem aprender como praticá-lo. Assim, no cotidiano da vida, nas ações mais simples, encontrar-se-ão com Cristo. Pois Ele disse: “Quem guarda os meus mandamentos é o que me ama, eu o amarei e me revelarei a ele… Meu Pai o amará e nos viremos a ele e faremos nele a nossa morada”. (Jo 14,21)

“Se dois ou três de vós estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio.” (Mt 18,20) 

 A vida monástica, sobretudo quando vivida em comunidade, é apresentada por São Bento como uma “escola onde se deverá aprender a servir o (Cristo) Senhor”. Trata-se, pois, de um grupo de cristãos que, tendo descoberto a radicalidade da sua vocação cristã, procuram uma escola e, naturalmente, um mestre, para serem não somente “instruídos”, mas mesmo “treinados” naquele modo de viver que o próprio Cristo nos transmitiu. Trata-se, portanto, da  transmissão de uma experiência a ser vivida, por meio de um aprendizado constante na comunhão fraterna, descobrindo-se sempre como viver os “caminhos” (mandamentos) que o próprio Cristo nos revela, para cada situação concreta e atual. A Regra beneditina refere-se a essa educação prática do monge com termos bem característicos:  “provação diuturna no mosteiro, uma instrução pela companhia de muitos, aprender a lutar contra o demônio, bem adestrados nas fileiras fraternas, na consolação de outros” (RB 1,3-5).

Na tradição monástica primitiva, a palavra Regra referia-se quase sempre à autoridade do abade. Essa autoridade, porém, jamais era arbitrária, mas, como bem mostra Bento no capítulo do abade, “o abade nada deve ensinar, determinar ou ordenar que seja contrário ao preceito do Senhor, mas que a sua ordem e ensinamento, como o fermento da divina justiça, se espalhe na mente (coração) dos discípulos.”Logo em seguida, acrescenta: “proponha os mandamentos do Senhor por meio de palavras, e aos duros de coração e aos mais simples, mostre os preceitos divinos pelas próprias ações”.

Mais tarde, passou a designar também o conjunto das normas práticas que ensinavam como viver aquele caridade fraterna, característica dos cristãos da primeira comunidade de Jerusalém, que, pondo em prática os mandamentos de Cristo, realizavam a verdadeira comunhão (koinonia) no amor onde tudo era comum a todos e “havia um só coração e uma só alma”[4]. A essa regra prática da comunhão, transmitida a partir da comunidade cristã a uma comunidade de monges e assim, de uma geração a outra, dava-se o nome de Regula Communis.

Devemos nos referir, ainda que rapidamente, ao significado da palavra “Regra” nos importantes documentos encontrados em 1947 nas grutas nas vizinhanças do Mar Morto, em Israel, junto ao mosteiro de Qumrân, hoje considerado, quase que por unanimidade, como tendo sido habitado pelos essênios. De particular interesse para o monaquismo, em geral, é o documento encontrado na Gruta número1 e um dos mais bem conservados, chamado Regra da Comunidade (anteriormente fora conhecido como Manual de Disciplina). Segundo os especialistas, esse manuscrito data do período de 100  a.C. a 75 d.C., sendo formado por composições de épocas sucessivas. A Regra da Comunidade seria a parte mais antiga, apresentando as normas para a vida da comunidade dos essênios, como um “manifesto” que cristalizou por assim dizer o ideal do movimento pré-kumraniano e que levou à formação da comunidade em Qumrân.[5]  Essa comunidade considerava-se herdeira da verdadeira “Comunidade da Aliança” e vivia no deserto justamente para se preparar, por meio de uma meditação contínua das Sagradas Escrituras e de uma severa disciplina penitencial, para aguardar a chegada do Messias e a renovação da Nova Aliança.

Finalmente, um outro sentido da palavra “Regra” pode nos ajudar a compreender melhor a sabedoria da Regra de Bento. A palavra grega que melhor exprime o sentido do latim ”Regula” é “kanon”, que significa não somente norma de medida, mas também medida como critério, em vista de se realizar um verdadeiro discernimento das situações concretas para distinguir qual o modo de agir que pode atualizar os mandamentos da Aliança. Assim como existe um critério para o agir “segundo Deus”, os filósofos gregos já procuravam estabelecer um critério para a Verdade, um critério para a Beleza, um critério para a Bondade, para a Harmonia etc.

Entendendo melhor a profundidade do conceito de “Regra” tanto na sabedoria dos gregos como na tradição judaica dos essênios e na vida monástica cristã, poderemos então compreender também por que motivo Bento, no final do Prólogo da sua Regra, encoraja aqueles que desejam responder ao chamado de Deu, com umas das mais belas palavras de toda a sua Regra:

“Devemos, pois, constituir uma escola do serviço do Senhor. Nessa instituição, esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas, se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por motivo de eqüidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade, não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por um estreito início. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável doçura do amor é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus”.

 Notas

[1].        M.J.Marx, “Incessant Prayer in the Vita Antonii” em Antonius Magnus eremita p.121-135; Orígenes, Homilia xxvii  sobre o livro dos Números (trad.) em Cuadernos Monásticos 124 e 125 (1998); Vida de Moisés, São Gregório de Nisa, (trad) Ed.Ciudad Nueva, Madrid, 1993; Vie de saint Martin, Sulpice Sévère, Sources Chrétiénnes,133,Paris,Ed.Cerf

[2].        Anselmo Grün, osb, Orientar personas, despertar vidas, Editorial Verbo Divino, Estella(Navarra), 2001; Graig S.Galbraith & Oliver Galbraith, The Benedictine Rule of Leadership,Adams Media, Avon USA,2004(já existe em português); e o já famoso: James C.Hunter, O Monge e o Executivo – Uma história sobre a essência da Liderança, Ed.Sextante, Rio, 2004.

[3].        No Chile já é bem conhecido o Movimento Apostólico Manquehue, que reúne leigos solteiros e casados procurando viver em comunidade e trabalhando na educação como evangelização. Assim relata o seu fundador  José Manuel Eguiguren por que motivo adotaram a Regra de São Bento: “No nosso Movimento descobrimos que a Regra de São Bento é um caminho específico para viver o Batismo, que compartilhamos com todo o Povo de Deus. Estou convencido de que quase toda organização humana pode encontrar na Regra bons conselhos sobre como desenvolver as relações interpessoais em busca de determinado fim. Porém, se este fim não é tomar como guia o Evangelho (cf.RB Prol 21) não estamos mais falando de vida beneditina. Porque, de modo definitivo, ser beneditino não é mais nem menos do que ser cristão” (Cuadernos Monasticos, 138 (2001) p.311.

[4].        At 2,44.45; 4,32

[5].        M.Delcor /F.Garcia Martinez, Introduccion a la Literatura Esenia de Qumrân; Ed.Cristiandad, Madrid, 1982

Dom Abade Joaquim de Arruda Zamith, OSB
é abade e professor do mosteiro de São Bento, em Vinhedo, interior de São Paulo. Foi presidente da Congregação Beneditina do Brasil entre 1996 e 2002.

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