Na captura de uma fantasia

Na captura de uma fantasia

 

Forma dramática

33 Variações, do dramaturgo venezuelano Moisés Kauffman, é um texto cuja escritura teatral obedece a um modelo de dramaturgia considerado convencional, baseado em pares semânticos de cuja fricção a peça procura extrair seu vigor dramático. Há dois planos temporais: de um lado, o que envolve a musicóloga norte-americana Katherine, que nos dias atuais está obcecada por conhecer mais a fundo o mistério que cercou as famosas Variações Diabelli, de Beethoven; de outro, o que apresenta o próprio compositor alemão, em Viena, entre 1819 e 1823, período em que ele se dedicou a transformar um tema menor em uma de suas obras-primas.

A partir dessa divisão temporal básica, outro duplo se estabelece em cena: Beethoven projeta sua genialidade, de modo invertido, sobre um compositor a quem falta o mesmo talento que lhe cabe, apoiando-se para as tarefas do dia-a-dia em um criado fiel e dedicado; já Katherine contrasta sua concentrada paixão pela música com a indeterminação profissional de sua filha Clara, encontrando um firme apoio na figura de uma companheira inestimável, a bibliotecária alemã responsável por cuidar do acervo sobre Beethoven em Bonn.

Há ainda outros jogos de correspondência espraiados pela peça, mas um em especial reúne acima dos demais uma alta carga de dramaticidade: seriamente doentes, Beethoven e Katherine talvez estejam às voltas com as obras finais de suas vidas.

Ideias teatrais

Apesar de estarem circunscritas à esfera da previsibilidade que marca o drama como gênero teatral, algumas ideias veiculadas pelo texto de Kauffman gozam de potencial expressividade. Primeiramente, a peça fala dos limites entre a genialidade e a mediocridade. O que teria levado Beethoven a se interessar pelo corriqueiro tema de Diabelli, composto sem fazer uso de nenhuma elaboração artística, continua sendo um mistério, mesmo que hoje saibamos que o resultado desse interesse tenha convergido para a criação de uma obra difícil e grandiosa, como as 33 Variações. Somos nós, espectadores, que temos que perseguir essa sugestão: Beethoven encarna a transição do classicismo para o romantismo, quando a liberdade do indivíduo começa a ser mais importante do que o aprisionamento do espírito humano às rígidas regras da convenção e da tradição. O movimento do Sturm und Drang que o havia influenciado em seus anos de juventude apregoava a precedência do arrebatamento e da emoção sobre o cientificismo e a razão, revalorizando a poesia selvagem de Homero e Shakespeare, por exemplo, e a alegria espontânea da poesia popular.

Ora, teria Beethoven se sentido atraído por uma melodia fácil, sem cerimônia, popularesca até, por motivos tão elevados? Não teria de ser mesmo a “inconstante” Clara a responsável por mostrar para sua mãe a rude alegria melódica da valsa de segunda classe composta por Diabelli? O fato é que essa discussão prepara o surgimento da segunda ideia que se pode depreender do texto, a da transfiguração, expressa no momento, inclusive, em que a peça alcança seu ponto de virada. Por um subterrâneo e silencioso movimento, o banal se transforma em sublime. E surpreende a musicóloga de cérebro irretocável, mas corpo degradado. Símbolo talvez da transfiguração da finitude em transcendência – a que se pode atingir por meio de raríssimas experiências, a arte, certamente, incluída entre elas.

Jogo de damas

Os principais elementos ligados à dramaturgia e à encenação operam dentro da previsibilidade de recursos e de efeitos cênicos, mas, compreendidos dentro de sua dinâmica própria, ajudam a realçar a presença no palco de duas figuras centrais do teatro e da música do Brasil moderno – respetivamente, a atriz Nathalia Timberg e a pianista Clara Sverner.

Natalia, cuja trajetória se confunde com a própria história da modernização do teatro brasileiro, é uma de nossas atrizes mais talentosas, sem sombra de dúvida. Sua voz de timbre hierático, sua fina emoção – sempre à flor da pele – e sua presença magnética são empenhos da alta voltagem emocional a que costumamos nos expor diante da intérprete. Em cena, ela funciona como uma espécie de vértice para onde converge o trabalho dos demais atores: Wolf Maya, André Dias, Lu Grimaldi, Flávia Pucci, Gil Coelho e Gustavo Engracia, cada um a seu modo sustentando a urdidura – ora dramática, ora cômica, ora melodramática até – da empreitada.

Em relação à Clara Sverner, raríssimas são as montagens teatrais brasileiras que podem se orgulhar de contar, na execução de uma trilha sonora executada ao vivo, com a presença de uma pianista cujo talento e cuja sensibilidade –  com a licença do senso comum – escorrem pelos dedos. Ouvir as variações de Beethoven executadas pela concertista – para as quais ela se preparou especialmente, uma vez não fazerem parte de seu repertório – em franco e vibrante diálogo com o que ocorre em cena é um dos achados da encenação.

A meta de intérpretes da envergadura de Natalia e Clara é tanger constantemente o sublime. Para um espetáculo que se propõe a falar do inefável na arte, nada mais coerente. E se esse espetáculo ainda se lança à árdua tarefa de tratar de uma transfiguração, juntas, atriz e pianista se metamorfoseiam em cena. E contaminam o palco com uma energia diretamente proporcional à longa experiência artística e vivencial que cada uma delas, brava e honrosamente, detém.

33 Variações

Até 11 de dezembro
Quando: Sextas e sábados, às 21h; domingos, às 19h
Onde: Teatro Nair Bello – Shopping Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569 – Consolação – SP)
Ingressos: de R$ 60,00 a R$ 120,00
Telefone: (11) 3472-2417

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