Marcia Tiburi: ‘Acreditar em neutralidade política não é um bom caminho’

Marcia Tiburi: ‘Acreditar em neutralidade política não é um bom caminho’
A filósofa Marcia Tiburi, pré-candidata ao governo do Estado do Rio de Janeiro (Divulgação)

 

Depois de mais de década escrevendo na CULT  –  sem nunca falhar  ou aceitar convites de outras publicações para ganhar bem mais – a filósofa Marcia Tiburi se afasta da revista porque concorre, pelo PT, ao governo do Estado do Rio de Janeiro. Entendo as suas razões como heroicas e delineadas em uma plataforma de combate e enfrentamento ao fascismo  que prepara, cada vez mais, a sua emboscada mortal.

Acompanho as vias percorridas por Marcia Tiburi, que nunca preferiu as mais acessíveis e triviais, embaladas pelo desejo de transformar o mundo. Uma intelectual pública que dá sua cara a tapa com bravura e paixão.

Você tem uma carreira acadêmica construída com rigor e é uma escritora muito bem sucedida. Além disso ministra cursos e palestras em âmbito nacional. É casada, amada, tem uma filha. Por que resolveu abrir mão desse conforto para enfrentar uma candidatura ao governo do Rio de Janeiro, sabendo das dificuldades que enfrentará?

Não podemos permanecer vivendo como se não estivesse acontecendo nada com o nosso país. Na situação em que o Brasil se encontra, acreditar em neutralidade política pode até ser um direito, mas não é um bom caminho, tendo em vista o futuro aterrador que nos cabe modificar. Lembro de Walter Benjamin, às vésperas do nazismo tomar conta da Alemanha, falando que era preciso puxar o freio de mão da história. Estamos na mesma com a ascensão do fascismo no Brasil. Para mim, é um dever ético levar a sério a frase de Marx: os filósofos até agora se ocuparam em interpretar o mundo, cabe transformá-lo.

Você se filiou ao PT justamente quando a maioria deixou o partido. O que te move?

O Partido dos Trabalhadores é o maior partido do Brasil e cresceu desde o Golpe de 2016 e, mais ainda, desde a prisão de Lula. Não fui apenas eu que me filiei. Há muita gente tendo esse gesto. Não dá para abrir mão do maior partido de massas do campo progressista na luta por dias melhores para a população. No meu caso em particular, eu quis antecipar eticamente, aquilo que deveria ser feito por todos os que acreditam na união das esquerdas, que se beneficiaram das políticas do PT, direta ou indiretamente, ou aqueles que viram um país melhor e os esforços para que melhorasse. Demorei a entender que o PT era a luta possível em um país destinado a ser colônia, um país, cuja história se confunde com a escravização de pessoas, um país devorado pelo neoliberalismo, alinhado ao pensamento autoritário, à ditadura, desde os anos 60 e que agora é massacrado por ele novamente. Quase todo mundo disposto a pensar já percebeu que grande parte das críticas dirigidas ao PT foram mais por causa de seus acertos do que de seus erros. E como o mundo e a história dão voltas, o partido que foi apresentado como “terrível” durante o “escândalo” do famoso mensalão, agora se torna o baluarte da verdade na política desde a prisão injusta de Lula. A corrupta “guerra à corrupção” já mostra sua verdadeira face. Quem hoje ainda acredita que há um mínimo de imparcialidade nos juízes que mantém Lula preso? Quem não percebeu que a pretexto de combater a corrupção, a chamada “Operação Lava Jato” atendeu a interesses econômicos distintos dos do povo brasileiro e ainda corrompeu a própria democracia?

Qual é a sua principal plataforma política?

Fizemos, a muitas mãos, um programa de governo do qual podemos nos orgulhar, pois contempla aspectos fundamentais à redemocratização da sociedade em termos econômicos e sociais. Eu trato essa campanha como um “ensaio de governo”, ou seja, fazendo aquilo que consideramos que deve ser feito sempre: que é governar a partir de uma política da escuta e da participação. Não estamos vivendo uma eleição como outra qualquer. Trata-se de uma eleição sob intervenção do governo federal golpista. A situação do estado do Rio de Janeiro é catastrófica do ponto de vista econômico, fiscal e da estrutura produtiva. O estado hoje concentra índices muito ruins em todos os campos, do emprego à saúde, da segurança à educação, tudo vai de mal a pior. Sabemos que vivemos sob um desgoverno, cuja política é o desamparo e o descaso. Governar hoje no Rio será avançar para além disso, construindo um governo democrático, realista, mas atento, interessado, para além do abandono da coisa pública em que vivemos desde que a racionalidade neoliberal levou aos acordos do governo estadual com o governo do golpe. É evidente que precisamos melhorar a questão do emprego e renda em um momento imediato e, a seguir, vamos adensar cadeiras produtivas envolvendo saúde, educação, mobilidade, habitação. Vamos usar a cultura para disputar o jovem que hoje busca empoderamento no tráfico de drogas que, bem cedo, o levará à morte.  Eu acredito muito que é preciso incentivar a economia solidária e a agroecologia. E, como não poderia deixar de ser, trabalharemos com uma política transversal de participação de mulheres e outras minorias políticas, tais como jovens, negros e deficientes, no governo.

Explique, por favor, a lógica do assalto para aqueles que ainda não entenderam.

Já escrevi e falei bastante sobre isso, mas para entender sobre qualquer assunto é necessário superar as barreiras impostas por aqueles que desejam o povo infantilizado e sem capacidade de entender uma simples argumentação. Esse tema gerou mais uma fake news, ou “notícia falsa” contra mim. Dessa vez, produzida no dia seguinte ao julgamento do Lula pelo TRF4, e isso porque não aceitei participar de um programa de rádio em Porto Alegre com um pós-adolescente que integra justamente um grupo conhecido por fabricar fake news. Naquele momento, quase caí em uma armadilha de um emissora em busca de polêmicas fabricadas para gerar audiência, sem a menor intenção de promover um debate sério e de qualidade. Sabemos hoje, a partir de monitoramentos, que essas notícias, distorcidas, recortadas e coladas com o objetivo de me difamar, são produzidas principalmente em Porto Alegre. Esse tipo de “mídia” é uma verdadeira fábrica de calúnias e difamações com objetivos econômicos e políticos. Desde então, grupos organizados, com o auxílio de robôs e ignorantes úteis, passaram a espalhar que eu era “a filósofa defensora de assaltos”. Tudo isso a partir de uma entrevista que dei em 2015 na TV Brasil para Florestan Fernandes Júnior e Paulo Moreira Leite. Nela falei algo óbvio, que devemos tentar compreender toda ação humana a partir de categorias da lógica.  Mas, descontextualizaram uma fala minha e passaram a mentir que eu defendo assaltos. É claro que não defendo assaltos. Recortaram parte de um argumento, totalmente descontextualizada, e a tentaram fazer parecer uma opinião minha, justamente no momento em que eu tentava mostrar que opiniões não valem diante da verdade que, como professora de filosofia, eu busco. Toda essa polêmica, então, pode ser resumida em mau-caratismo com finalidade política.

Feminismo brasileiro:  o feminismo da mulher preta , da mulher da periferia, da mulher sem posto de saúde e escola – é mais difícil de ser colocado em prática? O que é o feminismo além da teoria?

O feminismo não é apenas uma teoria. Ele é uma práxis, uma teoria-prática. Uma ético-política que exige atitudes. A politização consciente da vida das mulheres é a base do feminismo. Quero dizer que o feminismo nos leva necessariamente ao ato ético e político. Podemos hoje dizer que “as feministas se ocuparam em interpretar o mundo e acabaram por transformá-lo”. Tem sido assim. Hoje a transformação do Brasil exige uma visão feminista de mundo. Uma visão das mulheres e uma visão que inclua as mulheres. Algo importante a ser pensado é que o feminismo não é igual em todo mundo, senão como um princípio. Nosso feminismo brasileiro e latino-americano é diferente do feminismo das mulheres da Europa ou da Islândia. É diferente um feminismo negro nos EUA ou no Brasil. O feminismo em qualquer lugar se faz para atender aos direitos das mulheres e minorias políticas em relação às violências específicas em contextos diferentes. Ao meu ver o nosso feminismo brasileiro tem que ser popular, voltado aos problemas de gênero que são intimamente ligados aos de classe e raça em nosso caso.

Quais são as suas crenças espirituais? Acha que o Estado deve ter uma religião?

O estado deve ser laico. Mas isso implica que haja mais diálogo entre as religiões. O campo da fé é diverso do campo da política. Os neofundamentalismos religiosos, por exemplo, trabalham com certezas que são incompatíveis com a esfera política. Defendo a criação de mecanismos de constrangimento democrático capazes de evitar que a confusão entre igreja e Estado, entre religião e política, coloque em risco o Estado laico. A função social religiosa deveria ser a do diálogo e do aconselhamento dos cidadãos e dos governantes.

O que fazer para impedir que os fascistas cheguem ao poder e promovam a barbárie?

Vários já estão no poder e já a promovem, inclusive usando a máquina pública, atos de violação aos direitos e garantias fundamentais, atos de barbárie. Precisamos falar sobre o fascismo. Precisamos debater o avanço da personalidade autoritária. Precisamos fazer com que a educação e a cultura impeçam o retorno de Auschwitz, como dizia Adorno. Mas como ele também dizia: Auschwitz não cessa de se repetir. Aqui no Rio, cerca de um mês atrás, Marcos Vinicius, filho de Bruna da Silva, foi para a escola e acabou sendo morto por um agente do estado com um tiro. Do genocídio indígena ao genocídio dos jovens negros, vivemos em um estado de massacre. Esconder isso é contribuir para a sua continuação. Precisamos ocupar o Estado e construir um não coletivo ao fascismo e às políticas de extermínio.

Como pensadora, quais são seus projetos para a educação e cultura? Dois segmentos abandonados no estado do Rio e também no Brasil.

Eu sou professora e escritora, e evidentemente esses temas me tocam em particular. Estamos em um momento de catástrofe econômica e política e precisamos de algumas coisas que são bem complexas: educação de qualidade, crítica e formativa, técnica e humana; precisamos de uma base curricular forte; e de uma sistema de educação que fomente a interação entre universidades e escolas das redes federais, estaduais e municipais. Além disso, a escola nesse momento deve ser um fator de desenvolvimento. Ela deve ser centro cultural e local de acolhimento para famílias. As políticas de cultura precisam hoje ser políticas de criação de emprego também. Nesse sentido, vamos apostar no audiovisual que contempla jovens a partir de uma perspectiva interseccional. Vamos estimular o teatro como atividade capaz de criar muitos empregos. Escolas técnicas e iniciativas voltadas ao audiovisual, às artes, à música, ao teatro serão priorizadas.

Você é uma mulher bonita. Isso atrapalhou seu percurso acadêmico? Dizem que já foi convidada a posar nua para uma revista masculina: é verdade?

Prefiro não responder. Tudo bem? Mas, para quem quiser entender como funciona o mecanismo da beleza na vida das mulheres sugiro a leitura da Naomi Wolf, mais precisamente um livro chamado O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas  contra as mulheres. Acaba de sair uma edição nova pela Rosa dos Tempos.

Quem merece seu trabalho ?  Quem inspira tanta coragem?

Sinceramente, eu vejo tanta gente sofrendo, crianças sem escola, mulheres vivendo sob todo tipo de violência, idosos morrendo à míngua, jovens sem oportunidades e perspectivas, os jovens negros morrendo aqui no Rio apenas por serem pobres e pretos e estarem sob a mira de um estado neoliberal e racista de extermínio, que eu acabo sofrendo junto. Talvez as pessoas não tenham a dimensão da compaixão e do amor aos outros em suas vidas. A depressão cívica que nos atinge em escala nacional tem a ver com isso. A infelicidade é social, não apenas um estado da alma. Somos seres subjetivamente porosos, somos abertos. Quando nos tornamos fechados é porque não aprendemos com o sofrimento, porque ele nos massacrou demais ou porque não conseguimos tratá-lo com a força da reflexão que é também uma força espiritual. Viver em um tempo de tanta miséria e de tanto sofrimento seria insuportável sem lutar contra isso. Ao mesmo tempo, existe para mim, um desafio ético em curso, que é também político. Quando eu falo em desafio ético, estou falando de uma travessia espiritual que todos temos que ter em nossas vidas. Cada um deveria se perguntar qual é o seu? Viver poderia se tornar algo até mais difícil, mas seria mais cuidadoso para com a alma. (No fundo, minha amiga, eu sou uma filósofa neoplatônica!)

O Brasil vai dar certo por que você quer?

Vai dar certo porque muitos querem. Agora é preciso agir para transformá-lo. Para tanto é necessário resgatar o sentido tanto de solidariedade quanto de comum, de algo que vale a pena ser construído junto.  Eu, sinceramente, acredito que há um tremendo medo de ser feliz que opera no egoísmo e no fascismo social que atualmente assolam o Brasil. A gente sabe que a felicidade é social e é política e que os que a pensam de maneira egoísta não a alcançam. Daí que as fórmulas do capitalismo tenham levado as pessoas a delírios de consumo, de produção, de aquisição. O capitalismo transformou o egoísmo em virtude e o desejo de possuir em mote existencial. Neuroses e perversões nascem principalmente em nome do capital, do patriarcado e do racismo que o sustenta. Já a felicidade, que é o contrário disso, tem a ver com afetos, uma vida de princípios, de reconhecimento e de sabedoria. E essa vida se faz em comunidade e em sociedade. Pensando e agindo em nome do comum. Esse comum nesse momento é a cidade de cada um, é o Brasil, é o mundo. No meu caso, o Rio de Janeiro.

(4) Comentários

  1. AMEI ESSA ENTREVISTA ESSA MULHER E DEMAIS MUITO SENSATA EU GOSTARIA QUE ELA FOSSE CANDIDATA À PRESIDÊNCIA DA REPUBLICA QUE EU VOTARIA NELA SEM MEDO DE SER FELIZ O LULA JÁ TEVE O TEMPO DELE TEM QUE DAR A VEZ PRA OUTRA PESSOA

  2. Márcia, são tantos os esteriótipos que nos amarram, a negra os seus, a branca q faz luzes e usa salto, os seus, a Índia, a emigrante… todas alvo de uma maneira ou de outra. Às vezes cansa, sabe. E o pior, dentro dos redutos da esquerda acaba-se criando um padrão do q e como falar, vestir…Mas vou aqui todo dia, me incluir na luta por me fazer ouvir, como tantas outras q enfrentam abismos q por vezes parecem intransponíveis, já q sozinhas, muitas vezes, mas da trilha não nos perdemos. Quando a gente escuta uma de nós uivar assim como vc, a gente acerta o passo.
    Bjo!

  3. No momento atual, não sei se vibro ou lamento ao assistir uma filósofa como Márcia Tibiri se envolver com a política suja e corrupta da nossa nação. Se eu fosse carioca, meu voto seria dela, mas com bastante receio de , mais um vez, perdemos uma mente dessa para o poder, a exemplo de tantos.

  4. Muito bem, Márcia. A política partidária, hoje, precisa de pessoas que pensam e tenham projetos principalmente sociais, já que este é um aspecto menos encarado pelos governantes.

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