Patriota

Patriota
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Aquele dia estava quente e o isolamento social parecia insuportável a Boris. O homem resolveu fazer algumas arrumações em suas ferramentas, só para passar o tempo, quando se recordou de ter deixado algumas no carro. Era cedo e Matilde ainda dormia à sono solto e pesado, como de costume. Pegou a chave do carro e saiu.

Apertou o botão para chamar o elevador usando o cotovelo do braço esquerdo. Enquanto aguardava lembrou-se da barulheira que alguns vizinhos fizeram na noite anterior, batendo em panelas. Ele preferia não participar desses movimentos, sempre aparecia alguém perguntando sobre a política polonesa, querendo que Boris se posicionasse lá e cá. Pensava ser melhor sair pela tangente e dizer que estava há muito tempo fora da Polônia, que não saberia muito bem como opinar. Mas era só uma desculpa, na verdade acompanhava as notícias. Andava com crescentes saudades ultimamente e preocupado com seu país, principalmente depois que resolveu se aposentar completamente. Mesmo assim, falava mais alto para Boris sua aversão a discutir com essas pessoas que carregam vícios de pensamento, que muitos confundem com radicalismo, por isso escapava dos confrontos.

O elevador chegou e ele abriu a porta com o cotovelo direito, travou com o pé esquerdo e completou a abertura com o cotovelo esquerdo. Entrou com um pulinho ridículo e apertou o botão do painel, para o elevador parar na garagem, com o cotovelo esquerdo.

Enquanto o elevador cumpria sua tarefa, lembrou-se dos netos que estava impedido de ver por esse tempo todo. Enquanto pensava nisso, reparou que saiu com a camisa da seleção brasileira que ganhou dos antigos colegas de trabalho. Foi uma boa piada daquela equipe – suspirou de saudades – mas nunca saía de casa vestido com ela. Concluiu que seriam apenas alguns minutos, com sorte ninguém o encontraria assim. Já chegava à garagem quando viu um aviso, fixado no elevador, dizendo que os funcionários do condomínio não estariam em atividade, devido às restrições de circulação na cidade.

Saiu do elevador, empurrando a porta com o cotovelo esquerdo, travando com o pé esquerdo e fazendo um giro de 180° para escapar. Caminhou pela garagem até o seu carro. Ao abrir a porta pensou que não tinha sequer ligado o motor há dias. Terminaria por ficar sem carga na bateria ou com entupimentos. Avaliou ser melhor dar pelo menos uma voltinha por perto.

Houve breve dificuldade para que desse a partida no motor. Realmente se fazia necessário – constatou.

Quando saía pelo portão do prédio, lembrou-se de não estar com documentos. Mas como seria apenas uma voltinha rápida, não se importou.

Desceu a rua onde mora com a intenção inicial de cruzar a Rua Barata Ribeiro, entrar na Avenida Atlântica e retornar pela segunda transversal. Mudou de ideia quando pensou que o motor precisaria de um pouco mais de velocidade. Melhor seria seguir até a Avenida Atlântica e andar um pouco por lá.

Antes de chegar à Avenida Atlântica verificou a impossibilidade de seu último plano. Havia uma aglomeração de pessoas vestidas de camisas amarelas, com poucas de branco, verde e de azul, algumas delas empunhavam bandeiras do Brasil e faixas. Resolveu escapar disso e entrar na Rua Domingos Ferreira para retornar em direção à Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Precisou parar em seguida, pois havia um caminhão meio atravessado na rua, de forma a impedir o trânsito.

Alguns homens grandes e muito fortes, vestindo camisas amarelas da seleção brasileira, abriram as portas do carro acessando a maçaneta interna pelas janelas deixadas abertas por Boris. Entraram no carro, com naturalidade, e ocuparam todos os lugares. Um na frente e três espremidos atrás.

– Toca para o Metrô, ordenou o que estava na frente.

Boris ficou muito nervoso e assustado. Sempre que ficava assim embolava as línguas e misturava português e polonês. Tentou pedir para que saíssem, mas foi interrompido bruscamente por um dos que estavam no banco de trás.

– Patriota, o caminhão saiu, toca logo essa carroça.

Boris pensou que largaria todos no Metrô e se livraria daquela situação. Suava abundantemente enquanto os quatro homens falavam aos gritos obscenidades carregadas de expressões racistas e preconceituosas.

Parou em frente à estação e os quatro homens saltaram do carro agradecendo em voz alta, mas sem sinceridade, enquanto o tratavam de patriota.

Acompanhou com os olhos os homens acessando a estação e já se dispunha a seguir para casa quando um guarda municipal apareceu. Ele dizia que não poderia estar parado ali. Boris tentou explicar que só desembarcava pessoas, mas novamente embolou palavras e idiomas. O guarda se aproximou para tentar compreender e reparou que falava com um homem idoso, em época de isolamento social devido à Covid – 19.

– Por que o senhor não está em casa? Não sabe que pertence a um grupo de risco nessa pandemia?

Ao aproximar-se um pouco mais o guarda municipal notou que Boris vestia camisa amarela da seleção brasileira e mudou de estratégia.

– Ah, o senhor estava na passeata. Não tinha reparado. – o jovem agente se afastou e fez sinal para que Boris prosseguisse.

Sem compreender muito bem, saiu, mas só conseguiu deslocar o automóvel por menos de um metro. O carro foi cercado por pequena multidão que gritava coisas assustadoras para o polonês. “Fora miliciano”, “vovô fascista” e mais um monte de palavras e expressões agressivas que se misturavam a palavrões.

Um carro da Polícia Militar parou e os soldados desceram para tentar acabar com o tumulto. Pediram os documentos a Boris, mas ele sequer conseguia verbalizar frases compreensíveis. Detido, ele e o carro foram levados para a delegacia da rua Hilário de Gouveia. A ação dos policiais foi aplaudida não só pelos que estavam ao redor do carro, mas também por muitas pessoas que gritavam das janelas dos prédios em frente. Foi uma algazarra de vaias e gritos.

Boris só conseguiu voltar para casa, à tarde, acompanhado de seu filho, que o foi resgatar. Mas não deixou de ouvir um sermão do delegado e outro do filho a caminho de casa. Além de Matilde ficar sem falar com ele por vários dias, pois não acreditava nas explicações absurdas de Boris.

Nos dias seguintes Boris sentiu dores de cabeça, coriza e um pouquinho de dificuldade na respiração. Mas não deve ser nada, certamente foi aquele ventinho que correu naquela noite, chegou inclusive uma frente fria.

 

Wagner Torres de Araujo, 60, é professor de História (que ama ficção). Nascido e residente na cidade do Rio de Janeiro, é autor do livro Memórias dispersas

 

 

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