Um rosto no qual me reconheça: Leonardo Fróes faz 80 anos

Um rosto no qual me reconheça: Leonardo Fróes faz 80 anos
Leonardo Fróes: no topo da montanha, sorrindo, nos convida para a jornada mais simples e espetacular (Foto: Mônica Imbuzeiro)

 

Tateio a figura de Leonardo Fróes. Por que tanto encanto? O que há nele – no rosto sereno, na fala bonita, nos gestos precisos das mãos e dos versos – que parece nos colocar diante da personificação da poesia – de uma poesia que sequer conhecemos ainda? Por que ele pode, como tão poucos, dizer e mostrar que fez da sua vida um poema – um poema de que outros poemas são feitos? Uma vida-poema de que nascem versos com a mesma organicidade com que saem do chão beterrabas, milhos, grama, toda uma floresta?

A figura de Leonardo Fróes me engole: ao tentar entendê-la, ela me envolve em sua trama, em sua selva, e fico sem saber distinguir onde termina o poema, onde começa uma outra coisa ainda sem nome. Talvez seja isso: Leonardo Fróes rompeu as margens do poema. Ao decidir sair da cidade e construir a vida com as próprias mãos no meio do mato, todas as palavras da terra – cultivar, brotar, cavar, plantar, arar etc. – tornaram-se também os termos de sua relação com o todo da vida e com a poética que delas se projeta.

O que esperamos de um poeta? Nada. E tudo. O poeta não nos deve nada. Poemas, talvez. Mas nem isso. O poeta é livre, não tem dívidas conosco, pode muito bem ficar em silêncio durante toda a sua vida. Falar pouco, falar muito quando quiser, não deixar registro de seu mais fundamental poema. O poeta pode passar décadas trepado numa árvore olhando as folhas chegarem e sumirem, os galhos ganharem força, os frutos tomarem forma. O poeta pode passar séculos amando, sendo amado, enquanto o poema em algum lugar dentro-fora dele vai buscando a fresta para nascer. Leonardo Fróes já disse que seus poemas nascem prontos, do jeito como depois chegam aos livros. O poema brota – vivo, autêntico, espesso. Morda. É isso que esperamos que um poeta nos ofereça?

Às vezes acho que idealizo demais Leonardo Fróes. Pode ser. Volto aos seus livros e neles encontro – realíssima – essa figura que reúne as faces mais admiráveis do poeta, do monge, do professor, do índio. Humano. Ser vivo entre seres vivos enchendo de vida – e enchendo-se de vida com – tudo ao seu redor. Salta de cada poema, cada vez mais precisa e consistente, a figura que me encanta. Alguém que nos lembra, a cada gesto, que essa coisa chamada poesia tem que ser parte de algo maior, de um sentido maior, ou até mesmo de uma vida que faça mais sentido. Uma vida para a qual olhemos e nossas relações com as pessoas e com a natureza nos deem prazer e vontade de ficar mais tempo aqui na terra. É ótimo ter algum tempo na mesma terra em que está Leonardo Fróes – então aproveito.

Amamos os poetas pelo que fazem surgir em cada poema, cada verso. Alguém já disse, com razão: amamos os poetas pelo que eles dizem por nós. Mas amamos também pelo que deixam de fora dos seus versos, pelo que não dizem sobre nós. O simples fato de que alguém dedique sua vida a cuidar das palavras – porque cada uma delas guarda um pedaço insubstituível da conversa que alguns dos primeiros seres começaram e que não podemos deixar que alguém encerre – já é admirável. O poeta é alguém que move diariamente essa conversa para mantê-la viva: cava, aduba, rega, cuida. De sol a sol. Manter as sílabas vibrando, renovar os sons e os sentidos de tudo, mostrar as pontes entre todas as formas que os povos encontraram para fazer objetos de palavras a partir de suas experiências particularíssimas – lançar mais uma linha ou duas no caderno de jornada de bilhões de mulheres e homens sobre a terra atravessando séculos e séculos. Nos livros de Fróes, como em poucos outros, sinto estar em contato com essa jornada.

Digo sem receio que o mergulho na poesia de Leonardo Fróes – lembre-se: nos poemas e na figura que se projeta deles – me transformou como leitor, porque me fez voltar aos outros poetas que amava com olhos novos. E essa experiência de transformação, que aponta para o futuro, me permitiu ver melhor como outros poetas me transformaram até aqui. Ou seja, minha relação com a poesia – a que já li e a que lerei, a que escrevi e a que pretendo escrever – se transformou. Mas, assim como Fróes nunca fala apenas de poesia (em suas entrevistas e depoimentos, sempre muito eruditas, tudo o que diz sobre poesia, filosofia, arte, não se separa das explicações sobre plantar árvores, arar a terra, cuidar da horta, construir paredes e tetos, consertar o carro, sentir prazer, levar o corpo ao limite em longas caminhadas), percebo na minha relação com seus versos uma transformação ainda mais profunda com tudo aquilo de que sua poesia se faz: a língua, a terra, a vida. O amor e suas múltiplas práticas. A poesia e suas múltiplas formas. Viver bem: “minha vida passou a ser poesia, então é cada vez menor a necessidade de escrever”.

Já passamos horas discutindo se devemos admirar as obras de arte produzidas por pessoas nada admiráveis… Há questões importantes nessa conversa, claro, mas cada vez mais tenho admirado mesmo é quem faz da vida poesia. Leonardo Fróes é desses raros: “ser poeta significa dizer não ao tipo de sociedade que eles querem nos impingir”. E é com a vida-poesia toda que Fróes diz não à brutalização da sociedade em que tentamos viver, ao cultivar nos versos e na forma como vive o que queremos dizer e viver. Chegando agora aos 80 anos, quando poderíamos imaginar que já estaria descendo a montanha, Leonardo Fróes nos surpreende novamente: está lá, no topo, sorrindo, convidando para a jornada mais simples e espetacular. É impossível imaginar um guia melhor.

 

INTRODUÇÃO À ARTE DAS MONTANHAS

 

Leonardo Fróes

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.

 

Leonardo Fróes nasceu em 17 de fevereiro de 1941 e completa 80 anos vendo sua obra ocupar o centro das atenções entre leitores de poesia e poetas das novas gerações. Nascido em Itaperuna, no interior do Rio de Janeiro, estreou em livro com Língua Franca (Edições de Ensaio, 1968) e lançou diversos livros nas décadas seguintes, hoje reunidos no volume Vertigens (Rocco, 1998).

Durante todo este período, os leitores também encontraram o nome de Fróes como tradutor de autores como Faulkner, Goethe, Virginia Woolf, Ferlinghetti e Flanery O’Connor, entre muitos outros. Sua poesia, no entanto, começou a circular de modo mais intenso na última década, com a antologia Trilha (Azougue Editorial, 2015), a reedição de Sibilitz (Chão da Feira, 2015), sua participação memorável na FLIP de 2016, o volume dedicado à sua obra na Coleção Postal (Azougue e Cozinha Experimental, 2017) e o documentário Um animal na montanha (realizado por Alberto Pucheu, Gabriela Capper e Sergio Cohn, 2017), entre outras mostras da admiração despertada por sua poesia e por sua figura.

Estão previstas para 2021 duas reedições importantes de sua obra: sua poesia reunida sai pela Editora 34 e o ensaio Um outro. Varella – em que Fróes estuda a obra de Fagundes Varella (1841-1875), mas esclarece muito de sua própria poesia – sai pela Corsário-Satã.

No próximo sábado (20), às 19h, a Casa das Rosas realiza uma homenagem aos 80 anos de Leonardo Fróes em seu canal do Youtube. O recital “Um rosto no qual me reconheça” reunirá os poetas Alberto Pucheu, Cide Piquet, Josoaldo Lima Rêgo, Júlia de Carvalho Hansen, Leonardo Marona, Michaela v. Schmaedel, Natália Agra, Nina Rizzi, Ricardo Domeneck, Tarso de Melo (organizador) e Thiago Ponce de Moraes para lerem poemas de Fróes e comporem, com suas vozes e rostos, uma antologia viva da poesia desse jovem de 80 anos.

Tarso de Melo é poeta, autor de Rastros (martelo casa editorial, 2019), entre outros livros. Doutor em Filosofia do Direito e atualmente pós-doutorando na Faculdade de Direito da USP.


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