Imersão

Imersão
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Numa galáxia so far away estávamos eu e a criatura a quem resolvi chamar de kind. No desespero, foi a única palavra que sabia não ter gênero – se resumia a isso meu aprendizado de alemão. Eu ri internamente pensando que Elza Soares teria um pouco de razão quando diz que deus é mulher. O lugar era igualzinho a um fundo de tela de celular. Sempre desconfiei que não existisse céu e inferno, mas imaginei o “the” ser superior diferente. A criatura kind não tinha gênero aparente. Diante de tantas reflexões existenciais, eu queria saber se era um homem ou uma mulher, estaria eu apegada a minha pestilenta geração millennial ou só tentando interpretar o lugar de fala de cada um ali.

Fiz menção de dizer algo, ou um amém nas mãozinhas namastê-miguel-falabellafim-de-vídeo-show, daí lembrei do punhado de gente por quem eu nutria um asco e que respondia a tudo no WhatsApp com as mãozinhas. Será que kind lê tudo o que a gente pensa? Kind esboçou um gesto para eu seguir em silêncio. Eu já achava que ele era homem a essa altura.

Apontou um banco para eu sentar, me mostrava cenas da humanidade, coisas clássicas assim, guerras, fotos National Geographic style, crianças sorrindo e eu me perguntava quem é que editou essa apresentação. Não passava de um ppt com efeitos de transição variados brega, brega. Lembrei das vezes que, confinada junto a grupos de pessoas, eu procurava ou implorava praticamente por um par de olhos que estivesse fazendo a crítica necessária para aquele momento: nos jantares com familiares distantes, reuniões com mais de 15 profissionais, todas as dinâmicas de grupo. Kind continuava a apresentação. Não apareciam as cenas memoráveis da minha vida, nem as constrangedoras, nem me obrigara a ver as cenas de filmes e seriados em que infantilmente fechei os olhos ou fui no banheiro (O iluminado na adolescência, O poço essa semana).

Kind não fazia questão nenhuma de personalizar nossa relação. Bastante profissional, com as pernas bem fechadas ao sentar no estreito banco, pensei: é mulher. Não lembrava de uma data precisa e nem de como eu tinha parado ali, mas a certeza crescia de que eu não estava sonhando muito menos morrido porque jamais em tempo algum nas minhas crenças mais profundas eu iria para outro plano toda arrumada. Se tinha algo que do qual me orgulhava nesse quase um mês de quarentena era de vestir roupas que nunca combinavam entre si e a base do modelito ser calça de moletom.

Não tinha passado muito tempo ali. Já tinha acionado o modo avião que desenvolvi ao longo dos anos, técnica na qual consigo manter o rosto e o olhar, por mais de hora, fixos em alguém, enquanto meu cérebro se debate entre será que desliguei a cafeteira e anotar que tenho que estudar sobre a Teologia da Libertação.

Kind agora me encarava com um inquietante tique de coçar a orelha.

Pensei que ia chegar a algum lugar com todas aquelas fotos (teve vídeos também – a pior curadoria já vista entre vídeos engraçados e “olha só o que esse cara fez” – meu segundo e fatal indicativo para Kind ser um homem). Não chegou a lugar algum, supus que eu tinha sido abduzida por um grupo de coaches por vingança da minha falta de compreensão ao seu trabalho.

Nada disso, estava somente sob efeito da quarentena. Delirando sozinha em frente ao computador. Há muito tempo sem falar com ninguém, pois casada com um programador que resolveu essa semana comprar uma assistente virtual que fala apenas amenidades.

Juliana Grünhäuser, 35, é professora de Literatura e aquarelista. Fazia exatos 5 anos que eu não escrevia algo desse gênero

 

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