Arcas de Babel: Josely Vianna Baptista traduz Lorenzo Ramos

Arcas de Babel: Josely Vianna Baptista traduz Lorenzo Ramos
Josely Vianna Baptista e Lorenzo Ramos (Fotos: Francisco Faria e Fernando M. Sassone)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua, desafiando a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Para esta terceira Arca, Josely Vianna Baptista traz uma prece transmitida oralmente pelo mbyá Lorenzo Ramos, texto que ela também apresenta. Comenta ainda uma exposição de arte inspirada na cultura Mbyá para a qual contribuiu com um poema de sua autoria, aqui incluído também.

Josely Vianna Baptista nasceu em Curitiba, em 1957. É poeta, tradutora e editora. Publicou Ar, corpografia (Iluminuras, 1991/92), Sol sobre nuvens (Perspectiva, 2007), Roça barroca (Cosac Naify, 2011/Sesi-SP, 2018), entre outros. Várias de suas obras foram traduzidas em inglês ou espanhol e receberam prêmios internacionais. Seu instigante percurso como poeta está relacionado a sua atuação como tradutora de literatura hispano-americana e sobretudo ameríndia. Além de Roça barroca, que reúne traduções de cantos mbyá-guarani e criações poéticas próprias, publicou uma tradução da cosmogonia ameríndia Popol Vuh (Ubu, 2018) e traduziu do espanhol Lezama Lima, Borges, Cortazar, entre outros. Tem também trabalhado em projetos que associam poesia e artes plásticas, como o site-conceito Na tela rútila das pálpelbras. Leia, abaixo, o texto e a tradução de Josely.

 

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 Mba’e ã’ã: a prece dos Mbyá em busca de coragem e força espiritual 

Mba’e ã’ã nomeia os cantos sagrados com que se invoca Ñamandu – figura principal da teogonia mbyá-guarani – em busca de coragem e força espiritual.

Há alguns anos, traduzi um desses cantos em colaboração com Luli Miranda, minha professora de guarani no início dos anos 1980. Feita a partir do original em mbyá, cotejado com as versões para o guarani paraguaio e o castelhano, a tradução primeiro veio a lume num dos números da coleção Cadernos da Ameríndia, criada por mim em 1996: Neblina vivificante, poesia e mito mbyá-guarani foi então lançado pela Tipografia do Fundo de Ouro Preto, em edição artesanal aos cuidados de Guilherme Mansur, com tiragem mínima e não-comercial.

Passado oralmente pelo mbyá Lorenzo Ramos ao pesquisador paraguaio Carlos Martínez Gamba durante uma de suas viagens à província argentina de Misiones, mba’e ã’ã faz referência a uma antiga tradição dos Mbyá: a criação de pequenas esculturas em madeira que representam personagens de sua cosmogonia. Hoje em dia, em meio à terrível devastação de suas matas, os Mbyá continuam a fazer suas talhas, mas para vendê-las à beira das estradas. Esses entalhes, em oposição aos a’etei i va’e,  os “verdadeiros”, são denominados simplesmente de -a’angaa (imagens, símiles, espectros).

Parte do material coletado por Martínez Gamba em Misiones integra Ayvu rendy vera (Buenos Aires, Ediciones del Sol, 1984), onde se encontra o original do canto-prece que aqui apresento em nova tradução, revista e com algumas alterações estilísticas.

A tatachina rupa que o canto evoca se refere ao côncavo da palma da mão com que se segura a madeira a ser entalhada. Traduz-se literalmente por  ‘leito de neblinas’, e alude à neblina vivificante cujo deus  é Jakaira –  nume protetor da névoa que surge no fim do inverno e infunde viço a tudo e todos. No vocabulário religioso dos Mbyá, rakã poty nomeia essa  palma da mão/neblina vivificante, cujos dedos são, assim, literalmente, “ramos floridos”.

Em novembro de 1995, o artista Francisco Faria foi convidado a fazer uma exposição no Centro Wifredo Lam, em Havana, e me convidou a participar. A mostra teve como uma de suas inspirações um livro nosso de poesia e arte visual, Os poros flóridos, publicado em 2002 no México pela Aldus. Numa das fotos que o artista cubano José Manuel Fors fez da exposição, vê-se a instalação de um círculo com as microesculturas zoomorfas – num arranjo que simboliza um rito de passagem da mitologia mbyá –, circundadas por um fragmento do meu poema*, vertido para o guarani por Luli Miranda. Nesse círculo auspicioso, e também no canto aqui publicado, marca presença a estrige, ou coruja, que se encontra numa das primeiras estações da viagem em busca do céu Guarani. Aliás, num dos mitos cosmogônicos do Ayvu Rapyta que traduzi para meu livro Roça barroca, uma coruja, ou murucutu, desponta como “nume do escuro”, reverberando, na cena de origem da Primeira Terra, ao lado de “Nosso Pai, o Sol, lume (nume) da aurora”.

 

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PRECE

 

Ñamandu, Pai Verdadeiro, o Primeiro!
Ouve de novo meu canto,
pois te imploro de novo neste canto:
possa eu fazer com o lenho que tocam os meus leitos de nevoeiros,
com o lenho que os ramos em flores de meus leitos de nevoeiros tocam
possa eu fazer imagenzinhas de pequenas estriges,
tigres terríveis,
tatuzinhos amarelos,
leões-baios comedores de suaçuetês
e todo tipo de totenzinhos,
pois os verdadeiros estão a um passo de teu paraíso.

Possa eu fazer cestinhos ornados, os verdadeiros,
e também amplos canastros,
flautins de sons belíssimos,
flautas, unidas flautas,
arcos imperfeitos
e flechas imperfeitas de pontas denteadas.

E só depois de os vender aos estrangeiros,
comprarei carne, só um pouco,
um pouquinho de açúcar,
outro pouco de sal salgadíssimo
e de perecível farinha de milho,
para comer junto com meus irmãos, com todos,
em roda dos poucos assentos de nossas fogueiras,
nós, uns pouco a pouco órfãos de teu paraíso,
que ainda damos ânimo uns aos outros, apesar disso,
para ir vivendo a vida em tua morada terrena.
Depois de os vender aos estrangeiros.

Ouve minha prece,
Ñamandu, Pai Verdadeiro, o Primeiro!

 

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MBA’E Ã’Ã

 

Ñamandu Ru Ete Tenonde!
Aipo jewýma ajaeo’i;
a’e ramo ma, ñemingatu i eỹ jewýma ajae’o,
arojeapo ag̃ua che tatachina rupa ñemomba’eawykýgui,
che tatachina rupa rakã poty ñemomba’eawykýgui,
urukure’a i ra’anga i te ma,
aguara i javaete i va’e,
tatu ai,
guachuarã,
a opa mba’e rei rei ra’anga i te ma,
a’ete i va’e oime nde yva rokáre.

Arojeapo ag̃ua ajaka para ete i,
ajaka guachu,
mimby i pu porã meg̃ua i,
mimby reta i,
wyrapa reko achy,
u’y achĩ reko achy.

A’e gui maẽ, juruápy ame’ẽ ramove,
aupity va’erã cho’o i,
mba’e ẽ ’ẽ i,
juky i ẽ ’ẽ ro,
u’ichĩ reko achy,
che retãrã kuéry a’e javi kue i reve roupi ag̃ua,
ore rataypy rupa mbowy i re,
ore, yvára tyre’ỹ mbowy mbowy i
rojogueropyta i va’e
nde ywýpy poteri.
Ywypo amboae i kuérype ame’ẽ ramove.

Aipo ajae’o ñendu imondowy,
Ñamandu Ru Ete Tenonde!

***

* Original do trecho do poema de Josely Vianna Baptista que circundou os entalhes de animais na instalação Os poros flóridos:

(…) Os poros flóridos,
gotas de sangue
em flores, espessura
do corpo que morre e
renasce em leito de
nevoeiros, em nuvem,
em sopro, em nébula
de flores, em divina neblina
de limbos e corolas,
no respirar de um deus,
no ar de uma palavra,
entre a palavra-alma,
entre a palma das mãos,
e em renovos velosos, no
veludo dos brotos,
no gozo de teu riso
em corpo de linguagem.

Rito de esporos no ar vazio
violetas murchas recobrem os lábios,
os lábios abrem outras paisagens
(a morte agora metamorfose),
vermelhos, tintos, lírios retintos. (…)


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