Iya Kiva: poemas a sangue frio

Iya Kiva: poemas a sangue frio
A poeta ucraniana Iya Kiva

 

Na última sexta-feira (11), as tropas russas intensificaram os ataques a alvos civis em toda a Ucrânia. Apesar de todos os esforços dos países da Europa, dos EUA, das Nações Unidas, Vladimir Putin prossegue uma invasão que atinge alvos civis, e que já provocou o êxodo de mais de dois milhões de refugiados em menos de 2 semanas. Ao que tudo indica hoje, Putin prepara a sua “guerra total”, ou, melhor dizendo, seu plano de genocídio total, com o provável o uso de armas químicas.

Nesta mesma sexta-feira, a Universidade de Trier (no oeste da Alemanha, onde participo do grupo de pesquisa Lyrik in Transition) promoveu um encontro virtual com três poetas ucranianos que se encontram sob a ocupação russa: Iya Kiva, Oleh Kotsarev e Maria Galina. Além de lerem poemas relacionados à guerra, os três foram veementes em confirmar a situação de desespero e dor em que eles e seus compatriotas estão vivendo sob a ocupação. Durante o evento no zoom, as sirenes tocaram em Odessa (cidade de Maria Galina), e a transmissão de Oleh Kotsarev, de Kiev, caiu tantas vezes, que foi necessário que ele desistisse de ler os poemas. Mas ficou também claro, pelo discurso dos poetas, que permanecer na Ucrânia sob a ocupação é ao mesmo tempo um risco grande e algo que é assumido, por muitos ucranianos, como uma atitude imprescindível para manter a resistência de hoje e do futuro – um futuro que, para os ucranianos, é tão inseguro quanto esperançoso. “Não somos mais poetas, artistas, ou pessoas importantes”, disse a certa altura Iya Kiva (Ія Ківа, em ucraniano), “somos pessoas tentando sobreviver.” Para Kiva, ficar na Ucrânia neste momento é uma decisão, e não uma opção. Apesar de ter recebido propostas de residências e bolsas em outros países, ela, como muitos, resolveu ficar. Isso não significa que não se justifique a decisão de quem partiu para o exílio ou simplesmente fugiu de uma situação totalmente desumana, de uma guerra que tem tudo para se transformar num novo holocausto.

Na verdade, Iya Kiva já é uma refugiada da invasão russa de 2014, quando ela presenciou os primórdios da guerra na sua cidade natal, Donetsk (em Donbass). Após a Primavera Ucraniana de 2014, que pôs fim a um longo e corrupto governo pró-Rússia na Ucrânia, Putin invadiu a Crimeia, começou a incitar movimentos separatistas armados. Donetsk foi um dos primeiros alvos dessa invasão, que vem sendo preparada desde então. Refugiada em Kiev, Iya Kiva escreveu uma série de poemas sobre os eventos de 2014, que, lidos hoje, demonstram que a guerra de Putin é muito mais longa e dolorosa para os ucranianos. Os poemas de Kiva que aqui apresentaram foram lidos por ela nesta mesma sexta-feira. Traduzo-os a partir de outras versões, mas aproveitando o que entendo do russo e do ucraniano (ela escreve em russo, mas manipula a proximidade das duas línguas). Penso também, ao traduzir, em Clarice Lispector e Boris Schnaiderman, dois ucranianos tão importantes para a nossa literatura. Escrevo isto tudo, enfim, na esperança de que Kiva esteja segura, e que possa alcançar a publicação de sua poesia no Brasil.

será que jorra guerra quente da torneira
será que jorra guerra fria da torneira
mas como é que não tem uma guerra
disseram que ia ter hoje à tarde
a gente viu os anúncios com os olhos
que a guerra chegava às catorze em ponto

já faz três horas que não tem guerra
seis horas sem guerra
e se não tiver nenhuma guerra até à noite
nem lavar roupa sem guerra
nem janta sem guerra
nem chá preto sem guerra

e aí tem oito dias sem guerra
e a gente já tá cheirando mal
as esposas não vão querer a gente na cama
as crianças já não riem nem reclamam
por que a gente pensou que a guerra seria eterna

vamos no vizinho ver se tem guerra
do outro lado do parque verdejante
com medo de espalhar guerra pela rua
pensar na vida sem guerra como coisa temporária

em lugares como o nosso é extraordinário
que a guerra não jorre nos tubos
de todas as casas
de todas as gargantas

есть ли у нас в кране горячая война
есть ли у нас в кране холодная война
как неужели совсем нет войны
обещали же что будет после обеда
собственными глазами видели объявление
война появится после четырнадцати ноль ноль 

и вот уже три часа без войны
шесть часов без войны
что если войны не будет до самого вечера
ни постирать без войны
ни приготовить
чаю пустого без войны не испить

и вот уже восемь дней без войны
от нас нехорошо пахнет
жены не желают ложиться с нами в постель
дети позабыли улыбаться и ропщут
почему мы всегда думали что война никогда не кончится

станем же станем ходить за войной по соседям
по ту сторону нашего зеленого парка
бояться расплескать войну по дороге
считать жизнь без войны временными трудностями

в здешних краях считается противоестественным
если война не течет по трубам
в каждый дом
в каждую глотку

***

você pensa que está tocando Bach,
nos alto-falantes, marchas militares,
você pensa que é o Jascha Heifetz,
é o assobio triste dos tiros de canhão,
o violino parece mais rugoso,
a coloratura de soprano da guerra
uma oitava acima,
nos teus ouvidos corre sangue grosso,
o arco está morto

думаешь, что включаешь Баха,
в колонках военные марши,
думаешь, что это Яша Хейфец,
слышишь жалобный свист снарядов,
скрипка звучит грубее,
колоратурное сопрано войны
на октаву выше,
кровь заливает уши,
смычок убили

***

FAINA

(da série “Povo de Donbass”)

bate à porta da noite invisível a couve podre
do desespero a cabeça cortada – o mundo é água
em gritos de fogo na goela de um pássaro de medo

e a gente indo cada vez mais longe na memória
arrancando os capins da língua
como vento espinhoso na ferida da paisagem

além das portas da morte – ninhos ocos de raízes
luz de pedra sobre o grande lixão do amor
medo infantil no berço gélido do alento

deixamos nossas marcas como neve nas margens
manchas de sangue da liberdade do texto
que as árvores lerão para voltar pra casa

há feras inclinadas num balanço de fogo e culpa
ridentes no barranco de um festim de desonra
não sentem que a terra se desloca abaixo deles

há um coração oco rangendo num eco que volta.

Фаина

бьет в двери невидимой ночи отрубленной головой
гнилая капуста отчаяния – мир стоит как вода
в выжженом криками птичьем горле угрозы

пока мы все дальше и дальше в память уходим
вырывая с корнем сорняк языка
как шиповенный ветер из раны в ландшафте

за воротами смерти – пустые гнезда корней
каменный свет над великой свалкой любви
детские страхи в замершей люльке дыхания

мы же списки следов оставляем как снег на полях
перепачканной кровью свободы от текста
по которым деревья когда-то вернутся домой

там раскосые звери на качелях огня и вины
над оврагом хохочут бесчестного праздника
и не чуют смещений земли под собой

там в петле у долгого эха полое сердце звенит

 

PS: Jascha Heifetz, violinista nascido na Ucrânia, notabilizou-se na interpretação das peças de Bach (o arco aqui é o arco do violino). A série “pessoas de Donbass” foi escrita depois da invasão de 2014: cada poema “documenta” a vida de uma pessoa, sobretudo de mulheres como Faina.

Adalberto Müller é professor da UFF, escritor, e tradutor. Publicou recentemente a tradução da Poesia completa de Emily Dickinson (Editora UnB; Editora Unicamp, 2 vol.), de Partido das coisas (de Francis Ponge, Editora Iluminuras) e o livro de contos Pequena filosofia do voo (7Letras). É pesquisador visitante na Universidade de Trier, no departamento de Eslavística (projeto Lyrik in Transition).


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