Invenções abolicionistas em solidariedade às vítimas

Invenções abolicionistas em solidariedade às vítimas
Sistema penal é construído para que vítima seja coadjuvante da sua dor, lógica que deve ser subvertida (Foto Bryan Garces)

 

Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça.
Louk Hulsman

Uma das questões mais importantes que se coloca aos abolicionismos penais diz respeito às vítimas. Para retomar nosso encontro anterior, aqui me dirijo ao campo de tensões produtivas que estou tentando delinear. Digo isso porque não farei qualquer esforço para responder a essa ou a outras questões quando formuladas no interior de discursos de lei e ordem, tolerância zero ou populismo penal.

No entanto, também não me interessa fugir do debate quando um genuíno incômodo com as formas de pensar e abordar violências emerge entre pessoas que compartilham uma perspectiva ética e política marcada pela urgência em superar nossa sociabilidade colonial e autoritária.

O que vou esboçar aqui é um passo adiante. As análises abolicionistas sobre o sistema de justiça criminal como um dispositivo racista e misógino são muitas e são fundamentais. Porém, é preciso que se possa passar, é preciso que se possa inventar.

Abolicionistas penais criaram a noção de situação-problema para deslocar o crime de uma concepção naturalizada e destacar o caráter singular, relativo e relacional das violências socialmente produzidas. Inventaram também a resposta-percurso para arruinar o império da pena como desfecho pronto, necessário e automaticamente aplicável a todas as situações-problema, independente das pessoas envolvidas, ou pior, passando por cima da autonomia, dos desejos e das elaborações das pessoas envolvidas.

As linhas abaixo são o esboço de uma invenção que nunca poderá ser individual, e por isso, é também um convite para pensarmos juntos ultrapassagens possíveis do discurso criminal. Gostaria, ainda, que elas fossem lidas como uma nota de solidariedade a todos e todas que sofreram e sofrem inomináveis violências no âmbito de uma sociedade capitalista marcada por hierarquias de gênero, raça, classe, sexualidade, dentre outras.

Em 1997, numa conferência realizada no Brasil, Thomas Mathiesen nos incitou à subversão daquilo que, no Direito Penal, é conhecido como princípio da proporcionalidade, e que nos informa, com ares de coisa muito óbvia, que a pena deve ser proporcional ao crime cometido.

Esta obviedade induzida pela lógica penal não resiste a um olhar mais atento. Por exemplo, é claro que vida, dignidade sexual, patrimônio e tantos outros valores convertidos em bens jurídicos não são equivalentes à liberdade. Menos ainda à quantificação da liberdade em dias de prisão, de monitoramento eletrônico ou de qualquer outro controle que se possa exercer sobre o tempo e o espaço de alguém. De certa forma, o que o sistema penal faz é transformar dias de liberdade em um equivalente geral para o qual podem ser convertidos todos os valores sociais ou bens jurídicos. A liberdade, nesse sentido, é uma moeda.

Há muito tempo percebi que o princípio da proporcionalidade, apesar de não fazer o menor sentido, não causa maiores estranhamentos. Concluí que isso talvez ocorra porque este princípio também é uma referência ao regime dos castigos que conhecemos desde crianças, numa sociedade em que o infantil é uma das marcas do subalterno. Então, quanto maior a desobediência, maior o castigo, é assim que aprendemos em casa.

E qual foi a subversão que Mathiesen operou nessa lógica? Simplesmente, ele propôs que o apoio à vítima é que deve ser proporcional à gravidade da transgressão. Em outras palavras, quanto maior o crime, maiores devem ser a solidariedade e a reparação dos danos causados a quem foi violentado/a.

É aí que vejo se desenhar uma miríade infindável de desdobramentos: quanto maior a violência sofrida, maior o aparato institucional e os recursos mobilizados em favor da vítima; quanto mais grave a situação, maior a quantidade de profissionais dedicados às demandas de quem foi atingido; quanto mais multifacetado for o problema, mais facilitado o acesso a opções formais de apuração e pagamento de valores indenizatórios. As possibilidades são muitas e estão em aberto. Há muito trabalho a ser feito, de fato.

 

O efeito mais imediato desta
inversão do princípio da
proporcionalidade é trazer a
vítima para o primeiro plano
das nossas elaborações.

 

 

Enquanto os termos da balança forem a gravidade do crime, de um lado, e o tamanho da pena, do outro, o centro das atenções continuará sendo o autor da violência em detrimento da vítima. Outro efeito que também se pode extrair dessa proposta é construção de uma história e de um debate público narrados pelas vítimas em nome próprio, e não por uma representação que fala em nome “da sociedade”.

Todo sistema penal é construído para que a vítima seja tornada coadjuvante de sua própria dor. Essa lógica precisa ser urgentemente subvertida e superada. É necessário, portanto, que se inverta a ordem jurídica de abordagem do crime para, em primeiro lugar, oferecer às vítimas tanto mais solidariedade e apoio quanto maior tiver sido a violência perpetrada contra elas. É preciso produzir e antecipar formas jurídicas e institucionais (mas também informais e associativas) de apoio material, social, psicológico, emocional, simbólico. Nossa primeira urgência é fortalecer as pessoas violentadas para que elas possam contar suas histórias e formular suas próprias demandas. Em seguida, se ainda for pertinente, que se passe à discussão penal propriamente dita.

Claro que aqui se faz uma aposta no fechamento dos vasos comunicantes que alimentam o sistema penal. Trabalha-se com a hipótese de que a antecipação do apoio, da reparação e da atenção às vítimas em relação à aplicação de penas pode fazer com que estas últimas sejam cada vez mais esvaziadas de sentido e se tornem insustentáveis.

Já temos experiências suficientes que colocaram medidas punitivas ao lado de disposições não punitivas para serem operacionalizadas ao sabor do arbítrio dos operadores do Direito e sua sempre defeituosa compreensão do que significa “só utilizar em último caso”. Do Estatuto da Criança e do Adolescente à Lei Maria da Penha, vimos que os dispositivos penais, em sentido amplo, colonizam todos os outros. É necessário, portanto, pensar formas de anteposição obrigatória das medidas de apoio e reparação às vítimas em relação aos dispositivos de caráter penal.

A favor da solidariedade e da reparação dos danos, podemos acionar a noção de co-culpabilidade, elaborada por Eugenio Raúl Zaffaroni, para que se reconheça, em cada situação-problema, uma parcela de coautoria de nossa sociabilidade violenta e autoritária. A partir daí, podemos avançar em direção a vias de indenização às vítimas também por parte do Estado.

 

Se, no sistema de justiça
criminal, a “sociedade”
substitui (e cala) a vítima
para exigir punição, o que
se propõe é que a mesma
“sociedade” possibilite à
vítima falar por si mesma
e formular demandas
segundo seus próprios
termos, necessidades e
condições.

 

 

Em seguida, que a “sociedade” assuma seu lugar ao lado do autor do crime, para que dela também se possa exigir a necessária reparação do dano. Afinal, o que chamamos de crime e de criminosos são efeitos das nossas relações sociais e é desta forma que devemos assumi-los e enfrentá-los.

Os recursos para tanto – pois já vislumbro tropas de gestores da miséria vindo em minha direção com planilhas em punho – ensinou Nils Christie, podem vir do desinvestimento tanto na construção e administração de prisões, quanto nos aparatos ostensivos de segurança pública que só servem para incrementar a letalidade policial contra as populações mais precarizadas. Aliás, com a socialização de parte das obrigações indenizatórias perante as vítimas, quem sabe poderíamos abalar o regime de normalização social que alimenta violências individualmente perpetradas e que estão inscritas num registro de (re)produção do racismo e de outras formas de opressão?

Quando Mathiesen sugere que o senso de proporcionalidade que deve nos orientar é entre a violência cometida e o apoio às vítimas, ele incita uma forma de sabotagem do sistema punitivo. Ao mesmo tempo, ele nos permite retomar a solidariedade como princípio de orientação dos nossos trabalhos, militâncias, ativismos e relações. Mas acima de tudo, ele expressa um compromisso ético e político com as pessoas violentadas e o compreende como condição inescapável para qualquer coisa que se possa chamar de abolicionismo penal.

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia


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