Interrogações alucinadas em um mundo em convulsão

Interrogações alucinadas em um mundo em convulsão
O escritor argentino Roberto Arlt (Foto: Reprodução)

 

Imaginem vocês, cara leitora, caro leitor, um diálogo entre um astrólogo que é o mentor intelectual de uma seita que quer dominar o país e um major do exército. O major diz, citando um político suspeito de assassinar um governador: “Para governar um povo não se necessita mais aptidões que as de um capataz de fazenda” (p. 146). O astrólogo esfrega as mãos, satisfeito. Momentos depois, ele expõe seu plano para tomar o poder: “Agora, quando numerosas bombas tiverem estourado pelos cantos da cidade e os proclamas forem lidos e a inquietude revolucionária estiver madura, então nós interviremos, os militares (…) Diremos que em vista da pouca capacidade do governo para defender as instituições da pátria, do capital e da família, nos apoderamos do Estado, proclamando uma ditadura transitória. Todas as ditaduras são transitórias para despertar confiança. Capitalistas burgueses especialmente os governos estrangeiros conservadores reconhecerão imediatamente o novo estado de coisas.” (p. 148). O autor dessa cena publicou-a em seu romance, aparecido um ano antes de um golpe militar se impor em seu próprio país: a Argentina de 1930, com o general Uriburu. O roteiro, como se sabe, tem se repetido na América Latina ao longo do último século, com indesejável frequência. Esse seria apenas um dos motivos para ler o romance Os sete loucos, de Roberto Arlt (1900-1942), publicado em 1929 e agora relançado no Brasil.

O escritor estreara três anos antes, com o elogiado romance de formação O brinquedo raivoso. Era o relato autobiográfico que rememorava a adolescência de Silvio Astier, garoto que sonhava em fundar uma sociedade  criminosa que se sustentaria a partir de pequenos furtos e ambiciosos projetos: “E eu era aquele que havia sonhado em ser um bandido grande como Rocambole e um poeta genial como Baudelaire!”, dizia ele. Naquele livro, Arlt lançava mão de uma linguagem crua, que não tinha sido até então empregada na prosa argentina: a cidade tornava-se cenário literário. No Brasil, O brinquedo raivoso foi lançado inicialmente em 2013, em ótima tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, a maior tradutora de Arlt no Brasil.

Com Os sete loucos (1929), também traduzido por Ribeiro em 2000 e agora relançado, o cenário é a mesma cidade de Buenos Aires, mas o protagonista, Augusto Remo Erdosain, é um personagem que vai muito além do adolescente do livro anterior: o que era quimera em Astier, em Erdosarin é seu cotidiano. Erdosain é um homem ao mesmo tempo sonhador e desiludido, que acredita que um golpe de sorte pode mudar sua vida, seja através de um invento científico, ou da chegada da mulher ideal. Como nada disso nunca vinga, ele descobre que também pode desviar dinheiro da empresa açucareira onde trabalha como contador. Logo em seguida é descoberto e os chefes dão a ele o prazo de poucos dias para repor o dinheiro desfalcado. Mas Erdosain não é um canalha qualquer. Ele sequer comprava roupas melhores com o que roubava: continuava mal vestido como sempre, e é isso que um de seus chefes lhe joga na cara.

O livro então se anuncia como a peregrinação de Erdosain por Buenos Aires em busca de dinheiro emprestado com a fauna de seus conhecidos: um farmacêutico paranoico, um odiado primo de sua esposa, um astrólogo com aspirações a líder de uma seita político-religiosa bancada com dinheiro de prostituição e um rufião melancólico.

Em meio a tal ritual de humilhação para cobrir o desfalque, vamos conhecendo o universo psíquico de Erdosain. Diante de seu olhar angustiado de homem em busca de algo – dinheiro, prazer, amor – tudo se metamorfoseia para depois se esfarelar. Nada tem para ele valor de face. Estamos muito distantes do Naziazeno de Os ratos (1935), romance contemporâneo a Arlt, do gaúcho Dyonelio Machado (1895-1985). No livro do brasileiro, Naziazeno Barbosa precisava de dinheiro para pagar a dívida com o leiteiro, que lhe havia dado um ultimato, e as angustiantes 24 horas de busca incessante por algum empréstimo tinham, para Naziazeno, o objetivo de manter seu lugar de provedor e chefe de família. O livro de Arlt está em conflito com essa estabilidade de modo radical: Erdosain quer apenas salvar a própria pele e a ajuda pode vir de qualquer lado, de um amigo, de uma prostituta ou de um rufião. De onde quer que venha o dinheiro, Erdosain seguirá sendo o marginal desajustado, solitário e angustiado. Não há redenção.

O livro, logo se percebe, tampouco se mantém na mesma linha anunciada inicialmente: as reviravoltas não se limitam à personalidade de Erdosain, mas também à estrutura da obra. A sucessão de fatos é vertiginosa, e através dela é que o protagonista decide praticar maiores crimes, como sequestro e assassinato, para financiar o projeto da seita do Astrólogo, com o qual comecei este artigo. Há também uma diferença importante entre o tom dos capítulos: alternam-se episódios de insólitos diálogos – de caráter político, amoroso, filosófico ou criminal – com outros que apresentam longos solilóquios do protagonista.

As mulheres se sucedem diante de Erdosain, reais ou imaginadas. Uma figura feminina pode ser uma donzela milionária e melancólica a quem ele jamais beijará, uma prostituta que o espera há tempos, uma figura desprezível de quem ele sequer quer se demorar olhando, ou a mulher do amigo no colo de quem chorará seu desespero. Com diversos matizes entre a mãe e a prostituta, as mulheres de Arlt jamais se deixam capturar pela compreensão de Erdosain, que segue, feito autômato, numa tentativa canhestra de auto-reconhecimento, repito, sem nunca topar com a redenção.

Afeito às respostas estapafúrdias para as questões sem resposta, Erdosain passa a dedicar-se ao projeto político e místico do Astrólogo. Na boca do líder, as principais correntes políticas do início do século 20 passam por uma espécie de liquidificador alucinado e não é raro ouvir dele formulações que bem poderiam referir-se ao Brasil contemporâneo, como o desejo da implantação de uma autocracia fundamentalista: “Mussolini já não impôs o ensino religioso na Itália? Cito isso como uma prova da eficácia do bastão nas costas dos povos. A questão é apoderar-se da alma de uma geração… O resto se faz sozinho.” (p. 134)

Os sete loucos é, enfim, um livro sobre o desvario: afetivo, sexual e político, escrito por um homem que tinha boa percepção para reconstruir a linguagem da marginalidade, as agruras da diferença social, do machismo e do preconceito, sem no entanto recorrer a qualquer defesa da moral, da virtude ou da retidão. Ler Os sete loucos é experimentar o descentramento, a queda, a traição e o fracasso. Com esse livro somos convidados a penetrar numa selva de horrores, na dimensão pessoal, familiar e social.

A atual edição do livro, da Iluminuras, revista e corrigida pela tradutora, que assina o prefácio, traz ainda bons textos de apoio: um do crítico literário e jornalista Manuel da Costa Pinto e outro da professora de literatura hispano-americana contemporânea da USP, Ana Cecilia Olmos. A editora promete a reedição da segunda parte da história, Os lança-chamas, já para as próximas semanas.

Wilson Alves-Bezerra é poeta, escritor e tradutor . Doutor em Literatura Comparada pela UERJ, traduziu obras de Horacio Quiroga e Luis Gusmán


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