Houvesse disfarce

Houvesse disfarce

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


Houvesse disfarce, a pedra não precisaria de nenhum. Tão conformada à grama, coberta de musgo perto do muro que parece sempre ali. Só parece, porque pedra redonda, pedra pequena de algum lugar rolou, parou. O musgo veio lento e ficou. Muita chuva a pedra lavou e mais muito lento trouxe outro manto que ficou engrossou e agora pedra encouraçada de musgo. É isso, pedra em seu manto armadura couraça disfarce. Fosse planejado talvez não se fizesse, talvez não se acreditasse possível, mas aí está. Pedra silente camuflada, encouraçada, parada. Não é obstáculo para ninguém. Quando em vez, é suporte para ave que prefere essa altura à altura do muro. Sempre um estar ligeiro. E a pedra fica só pedra encouraçada de musgo, parada, silente. Quanto tempo? Quantas aves? Há tempo para a pedra? Talvez haja para as formigas que a escalam. Não são muitas, não é sempre. Talvez tenham vertigem de escalar a pedra e se deparar com o horizonte. Talvez ecoe a tentação, talvez não sejam muitas as que escalam, para evitar olhar o abismo. Talvez. A pedra não se importa. Está próxima ao muro povoado de brotos e lixo e grafite. Não escolhe a companhia, não se lamenta com o que fica por instantes e nunca mais retorna. Da mesma forma, com a que nunca muda. O muro, pois. Sempre aí, parece. Saberá suportar suceder, saberá de deterioração e reparo. Nisso o seu tempo? Que tempo é o tempo da pedra se tempo há? Aqui não há pêndulos, parece. Só parece porque vem a chuva, vem o vento, vem a brisa, vem os passos, aves chegam, formigas e o grilo. As formigas em sua diligência resistem à tentação de vertigem, o grilo vez por outra não. Vez por outra, tem a pedra como mirante sem farol, mas com tapete de musgo. Vez ou outra, grilo fica em seu mirante eleito e exerce o instante que talvez siga algum calendário que só aos grilos cabem seguir – quebra o silêncio da noite como já nos alertou o poeta. Atentemos para isso. Um único grilo pode quebrar o silêncio da noite. Talvez sejam nessas noites pertencentes a um calendário só dos grilos, talvez sejam nessas noites de silêncio quebrado que os sonhos escorram e molhem a terra, e molhem o cimento; e nutram a terra, e se estagnem no cimento. Deve ser preciso, deve ser isso a ocorrer apesar de aqui o poeta nada falar. Talvez não tenha testemunhado por imaginar que todos saibam, apesar de não saber do grilo que quebra o silêncio da noite. O poeta esclarece porque sabe que muitos não sabem do grilo e que a noite tem silêncio como fina casca necessária casca para que do lado de lá se abasteça e se faça o necessário alimento e quando o suficiente alimento que precisa do lado de cá escorrer. O grilo é convocado ao contrário das formigas. Elas não quebrariam o silêncio da noite. Não, não. Seu trabalho é outro e elas sabem e resistem à tentação de escalar a pedra. Pedra empedrada de musgo, está num dentro, está num ovo de musgo. Suporta com o muro e a grama e a terra e outras pedras, o quê? Certamente, muitos cacos de silêncio se misturaram ao musgo e aí se dissolveram, misturaram. Não é à toa que a pedra silente em sua permanência. Está ai segredo do ser encarnado, presença dura protegida e mirante dos seres, ínfimos seres, laboriosos seres que fazem o equilíbrio do necessário e suficiente. E quem determina o ponto de equilíbrio? O poeta também não declarou, não por achar que todos saibam, mas talvez porque talvez nem ele soubesse; talvez nem a ele tenha sido revelado esse segredo. Ainda mais que as palavras foram atiradas no mar. Dissolveram, desmancharam. Não são seiva, não são sangue, mas são vitais, por isso que não morrem e se adensam em sonhos que em algum momento pesa que não se aguenta, pesa que precisa transbordar, escorrer, molhar, alimentar, retornar, restaurar. Eis que a pedra mirante para o grilo convocado para quebrar o silêncio da noite na ordem de seu calendário. O poeta sabe e nos falou. A pedra sabe e suporta.

Eni Ilis, nascida em Campinas – SP em 1974, é artista autodidata e poeta.

 

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