Filosofia crítica e filosofia do direito: por uma filosofia social do direito

Filosofia crítica e filosofia do direito: por uma filosofia social do direito

A filosofia do direito cumpre um papel de pensar aquilo que, em suas preocupações imediatistas, as ciências especializadas do direito não têm como prioridade conhecer

 

Ao contrário de ser questão de somenos importância, é relevante a clássica pergunta sobre a utilidade da filosofia. Esta ganha a mesma relevância se deslocada para o campo da filosofia do direito, ou seja, da parte da filosofia que cuida do problema do direito. No entanto, essa pergunta somente ganha sentido desde que pensada não enquanto projeção da exigência utilitária e pragmática de mercado (ao confundir utilidade com produtividade), e nem como manifestação de qualquer forma de dogmatismo cientificista (ao confundir utilidade com aplicabilidade), mas no interior do debate sobre a práxis do pensamento, ou seja, de seu compromisso social. Por isso, na visão de Horkheimer, a teoria crítica nega legitimidade à teoria tradicional e sua inspiração no pensamento burguês, na medida em que este promete progresso e realiza ilusão, promete liberdade e realiza opressão, além de conduzir à incrementação da desigualdade e da reificação, estagnando a possibilidade de transformação social. É muito fácil se perder no bosque escuro dos conceitos filosóficos, seguindo a trilha da teoria tradicional. A feição de uma filosofia que provoca estagnação, enclausuramento e imobilismo social é propriamente a de uma filosofia cujo compromisso é intra-subjetivo, e não intersubjetivo.

Na perspectiva de uma abordagem crítica, a filosofia permite e consente o abalo do que simplesmente aparece aos olhos como sendo a dimensão do dado, a experiência da evidência. A filosofia pressupõe uma atitude radical, perante a vida e perante o mundo. Onde há ordem, ela pode ver desordem, onde há desordem ela pode ver ordem. É dessa subversão que acaba por colher o espírito de sua tarefa desafiadora, porque comprometida com a possibilidade do novo, do não visto e não experimentado, do inovador, daquilo que desafia a ordem da regularidade dos fenômenos e da aceitação da tutela da vida desde fora. Ou seja, a filosofia acaba por consentir uma certa atitude perante o mundo, que potencializa sua capacidade transformadora, na medida em que des-aliena, por abalar a estrutura e refundar de sentido a experiência sobre o mundo. A filosofia, como weltweisheit, como sabedoria mundana, como razão capaz de agir no mundo, significa um tipo de atitude perante o mundo fundadora de sentido.

A filosofia carrega conceitos, transporta-os, como prática de linguagem entre indivíduos socializados, que se tornam, uma vez conscientizados, os agentes portadores da capacidade de modificar as estruturas sociais. A transformação social se dá quando os conceitos são abandonados de sua característica abstrata e materializados em discursos, instituições, movimentos organizados de indivíduos, ações concretas que modificam a face do mundo. O mundo não é o que está aí, somente, mas também o que dele se faz a partir de ações concretas. Por isso, a filosofia tem um compromisso ético com a transformação, pois representa consciência desta latência que pressupõe linguagem e ação. A filosofia significa, nesse sentido, um interdito a toda forma de banalizar a vida, o mundo, a existência, as coisas, na medida em que o seu exercício favorece um movimento de resistência racional e de reflexão diante de uma tendência à simples aceitação das coisas como elas são, enquanto dados brutos que independem da reinvenção e do processo criativo do pensamento. A filosofia, nessa linha, é interpretada como força transformadora.

A filosofia acrítica é, por isso, ela mesma, forma de ideologia. Sem a sua superação, não há como pensar em transformação social, o que comanda a necessidade de que a jusfilosofia esteja irmanada com o ideal advindo da teoria crítica. A filosofia acrítica pode ser vista como ideologia, na medida em que se converta em um instrumental que, hipostasiando o “eu teorético”, anule as forças da transformação social que potencializam o processo de transformação social. Por isso, uma filosofia social do direito rejeita no exercício intelectual o estigma da erudição autocircular do filósofo. A tarefa da filosofia social do direito transfere-se ao jusfilósofo, ele mesmo, como compromisso de que seu pensar funcione como o detector reflexivo que percebe a opressão, como a navalha que acusa a exploração. Acaba aqui o dilema do filósofo de pensar sobre o flatus vocis das letras jurídicas. Seu operar é pelas idéias, como veículo de transformação social. O exercício nefelibata da jusfilosofia é um desserviço ao seu papel socioconstrutivo, este último assinalado por uma linha crítica. Se não há transformação sem ação, então é verdade constatar que não há filosofia sem práxis.

Como afirma Lukács, em História e consciência de classe: “A ética, por exemplo, impele à prática, ao ato e, assim, à política”; pode-se dizer que a filosofia do direito tem um compromisso ético com o seu tempo e com os desafios sociais de seu meio e, por isso, deve induzir à mudança no plano da ação e da interação sociais. Pensá-la fora dessa perspectiva é fazer silenciar a importância de sua contribuição crítica para o direito. Seu compromisso é manter-se acesa e atenta às modificações quotidianas do direito, à evolução ou à involução dos institutos jurídicos e das instituições jurídico-sociais, às práticas de discurso do direito, às realizações político-jurídicas, ao tratamento jurídico que se dá à pessoa humana… Não por outro motivo, a filosofia do direito é sempre atual, é sempre de vanguarda, por reservar para si esse direito-dever de estar sempre impregnada da preocupação de investigar as realizações jurídicas práticas e teóricas.

Por isso, a feição de uma filosofia do direito comprometida com a vida social é a de um constante esforço que a impede de deixar a história passar em branco, pois, ao conscientizar, ajuda a fazer a história da transformação. A reflexão jusfilosófica possui um papel incisivo sobre a realidade, não devendo dela se alhear. Em poucas linhas, pode-se dizer que a filosofia do direito não pode abdicar de sua função de “olhar para a realidade” e muito menos se acantonar aos dilemas de uma época para viver sofregamente das “utopias e conceitos”. Dessa forma, a filosofia do direito não somente se furtaria à sua missão, como também se tornaria ela mesma em utopia, a desorientar a própria prática jurídica. Assim é que, ao contrário do distanciamento, a filosofia do direito possui papel proeminente ao se imiscuir na vida social e nas formas como o direito a tutela.

Exatamente por isso, tem uma forte capacidade de detectar a opressão na vida social, os desrumos na prática jurídica, as distorções da ciência do direito, para, a partir daí, indicar e pontuar caminhos para a fixação e afirmação legítima do direito. Pensa-se estar a filosofia do direito, numa perspectiva crítica, instrumentada para a realização, para a ação reflexiva e para a reflexão ativa. Assim, assumir este objeto de pesquisa significa aproximar a reflexão jusfilosófica das reais condições nas quais se encontra e sobre as quais se produz. Significa também resgatar a verdadeira tarefa do direito na sociedade, crescentemente desvirtuada por seus usos estratégicos e por sua forma de afirmação como instrumento do próprio poder. Sem esse compromisso, a filosofia do direito é mero adereço das demais ciências do direito. Desprovida dessa sensibilidade, na leitura de Habermas, a filosofia do direito converte-se em instrumento a serviço da justificação dos modos de dominação social, sejam eles os do poder administrativo, no modelo legal-burocrático weberiano, sejam eles os do poder econômico, no modelo neoliberal e de mercado.

Ao contrário, portanto, da imagem tradicional da filosofia, espelhada na face de um pensamento que se faz pela abstração e pela distância das mais comezinhas questões sociais, afirma-se a identidade da filosofia crítica a partir de um compromisso natural com a política – quando se percebe que a filosofia política não é mero desdobramento por especialização da filosofia geral, e isso desde Sócrates (condenado à morte pela cidade por suas idéias) e Platão (refugiado na Academia como lugar de preparação dos futuros políticos de Atenas) –, exatamente porque conscientiza, mobiliza, promove a ação, incentiva, pelo pensamento, a recriação das próprias condições humanas do convívio social. Se a filosofia pensa o poder, discute e aponta os limites do poder, se pensa a justiça, discute e aponta as injustiças. É nesse sentido que seu papel e sua função social vêm exatamente descritos por essa sua intromissão na dimensão das questões de relevância política, porque de relevância social, na governança dos interesses comuns.

Uma filosofia que se queira social trabalha na perspectiva de sua constante intervenção no plano da ação histórica, e por isso pensa a práxis como o lugar de especial relevo para o debate sobre as formas de dominação em sociedade. A filosofia social postula e reivindica uma posição claramente normativa em suas pesquisas e reflexões, e, exatamente por isso, distancia-se do foco de produção de perfectíveis sistemas teóricos e de coerentes redes de descrição total da realidade. Diagnósticos e prognósticos são tecidos com base nos mutantes quadros da dinâmica da vida social, e, exatamente por isso, a prática da ética da resistência, como “núcleo impulsionador da resistência”, na afirmação de Adorno em Educação e emancipação, pela ação e pela teoria, revela-se na análise do enquadramento concreto das ações históricas que visam à transformação social. Dessa forma, a reflexão sobre a relação entre direito e sociedade ganha especial atenção, se considerada a tensão ineliminável entre faticidade e validade, para invocar a idéia de direito apresentada por Habermas em Direito e democracia.

O pensamento jusfilosófico, pelo esclarecimento da razão, pelo conhecimento reflexivo da história, pela compreensão da totalidade dos processos sociais, pela visão de amplitude acima das localidades dos conhecimentos especializados dos praticistas do direito, permite: a visão das modificações e das necessidades de adaptação do circuito das decisões sociojurídicas às mudanças em curso; o processo de aclaramento, em meio a conturbadas transformações, dos critérios para a reconstrução dos paradigmas jurídico-institucionais; a construção de uma leitura crítica, ante a necessidade de renovação, dos institutos e valores jurídicos não mais valiosos para a construção da vida social; a avaliação e a discussão cuidadosa do conteúdo das mudanças, em face das avassaladoras tentativas de desestruturação do convívio social, a partir de projetos insustentáveis, imersas nas vozes reformistas e no ímpeto dos espíritos vanguardistas.

A filosofia do direito pode ter, e efetivamente tem, um papel crucial na interação com as demais ciências jurídicas (direito civil, direito comercial, direito penal, direito constitucional, entre outras), sobretudo na avaliação daquelas que são as suas práticas epistemológicas, bem como uma determinante função social a cumprir, ante as expectativas que se depositam na formação de todo critério que define o que seja a justiça a ser praticada em um momento histórico determinado. A filosofia do direito, nesse sentido, cumpre um papel de pensar aquilo que, em suas preocupações imediatistas, as ciências especializadas do direito não têm como prioridade conhecer, e, exatamente por isso, na dilatada compreensão de um horizonte amplo de análise, é capaz de exercer uma função de orientação, análise e crítica, contribuindo para o próprio direcionamento do conhecimento produzido pela ciência do direito. Não deve ela estar vigilante da interação entre o fazer do direito e o pensar o direito? Não cumpre a ela proceder à avaliação daquilo que se pensa sobre o direito para que seja transformado em prática social? Portanto, não cumpre a ela a tarefa de, criticamente, avaliar os processos de transformação de idéias em leis, de conceitos científicos em fundamentos de decisões jurisprudenciais, de valores majoritários em paradigmas de ação social?

A filosofia do direito não pode se furtar à sua alta missão de, assumindo a sua posição de scientia scientiarum, estando desconectada das pretensões de apelo aos modelos normativos vigentes em uma sociedade (não se quer dogmaticamente reproduzir ou interpretar normas, mas verificar como estão sendo concebidas e porque não estão sendo aplicadas), apego este próprio das ciências específicas do direito, pensar os problemas inerentes ao modus operandi de um sistema jurídico. Isso justifica sua importância e sua interação com a prática do direito.

Afinal, a partir dessas premissas, é possível dizer que as pesquisas de uma filosofia social do direito devem, sobretudo, acenar no sentido deste visceral compromisso com as tarefas fundamentais para a implementação e o aperfeiçoamento da cultura democrática, com a promoção da educação para os direitos humanos e a preservação do debate sobre a dignidade da pessoa humana. O compromisso de reflexão que o direito mantém com essa dignidade deve caminhar no sentido dos incentivos a uma vida isenta dos níveis intoleráveis de violência, quando a dialética conceitual entre não-violência e direito parece ser um apelo essencial à idéia de que o direito possui um compromisso com a racionalidade da interação social, do que a filosofia do direito se reserva o papel de ser fiel guardadora.

Eduardo C. Bittar
é livre-docente e doutor, professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP); pesquisador-sênior do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP); secretário-executivo da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP-USP); professor do Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO

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