Em busca das raízes de Carolina Maria de Jesus

Em busca das raízes de Carolina Maria de Jesus

 

Ao narrar o seu cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo, a escritora Carolina Maria de Jesus obteve grande sucesso na década de 1960. Suas misérias e alegrias, testemunhas do surgimento das primeiras favelas nos anos 1940 na capital paulista foram registradas em Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960 e traduzido para 42 países.

Desde 2014, o escritor, jornalista e pesquisador carioca Tom Farias empreende uma jornada em busca das raízes da escritora. O autor dedica-se à pesquisa da obra de escritores negros brasileiros como Cruz e Sousa, José do Patrocínio, Luis Gama, Lima Barreto e  Maria Firmina dos Reis, “vítimas de uma invisibilidade criminosa, a mesma que quis transformar a Carolina Maria de Jesus em objeto de decoração das estantes em salas de visita”.

Ao refletir sobre as relações entre a vida e obra da autora de Quarto de despejo, nascida em 14 de março de 1914 em Sacramento, Farias afirma que “Carolina era uma mulher semi-analfabeta, sem profissão, mãe de três filhos de pais diferentes, e moradora de uma favela. A favela e a periferia estavam dentro dela e são o palimpsesto de sua obra, linha por linha”.

Sua biografia, lançada em 2017 pela editora Malê, divide a vida de Carolina em três fases. “A mulher” fala de sua infância e de seus antepassados, “a escritora” aborda sua fase como trabalhadora doméstica, sua vida na favela e sua ascensão ao mundo intelectual e da fama. Por fim, “o mito” relata seus últimos dias de vida, o ostracismo, o desejo de suicídio e o resgate da sua personalidade e da sua obra pelos movimentos sociais. Abaixo, leia trechos da conversa com o autor.

CULT – Quais foram suas principais descobertas na pesquisa?

Tom Farias – A principal tem a ver com a dimensão autoral da Carolina. Ela foi uma escritora completa e múltipla. Apesar da pouca estrutura linguística e, sobretudo, organizacional – morava num barraco de um cômodo, com três filhos pequenos -, ela conseguiu criar e construir uma literatura de dimensões mundiais. Não há registro de autores que despertaram tanta empatia do público, se bem que havia muita curiosidade, por toda a exposição que a partir de 1958 Carolina começou a ter. Esse fenômeno me chamou muito a atenção. Depois, a relação com os filhos, o combate ao alcoolismo em casa – Carolina na prática não bebia, mas um dos filhos, sim [este acabou morrendo atropelado no ano passado após atravessar uma avenida embriagado] -, os conflitos familiares, pois os filhos não queriam deixar a mãe se envolver com a vida literária, como se eles percebessem que a “literatura” iria matar a mãe. Outro ponto são as contradições da personalidade. Carolina se sentia superior aos seus vizinhos, sobretudo na favela, e essa postura a perseguiu por toda a vida.

Algum desses fatos mudou a sua percepção sobre a obra dela?

Fiquei maravilhado com a Carolina que conheci pelos relatos e pelos livros que ela escreveu. Sua vida tem muito de epopeia, de saga, dentro de uma fenomenologia dinâmica, que ainda não chegou ao limite da compreensão por uma razão muito justa: não se conhece todos os escritos deixados por ela, atualmente em torno de cinco mil, boa parte deles inéditos. Passagens importantes de sua vida ainda estão obscuras, como a origem de seus parentes, sobretudo os pais, Maria Carolina de Jesus e João Cândido Veloso. A compreensão dessa origem é um dado importante para a compreensão do “status” caroliniano, sem dúvida.

Ela tem, atualmente, o reconhecimento merecido? 

Carolina Maria de Jesus é, como sua obra tem provado, a escritora mais original da literatura brasileira de todos os tempos. Digo isto porque ela não precisou dos estudos acadêmicos, dos embasamentos teóricos, dos mergulhos dos preceitos socráticos para conceber uma obra universal. No que se refere a ser uma escritora negra, vai mais além este questionamento: Carolina era uma mulher semi-analfabeta, sem profissão, mãe de três filhos de pais diferentes, e moradora de uma favela. A favela e a periferia estavam dentro dela e são o palimpsesto de sua obra, linha por linha. Em vida, ela se transformou em um objeto de consumo. Era tratada como algo maravilhado, espécie de ser de outro planeta. As famílias ricas de São Paulo dos anos 1960 a chamavam para jantar à mesa social da casa, na companhia de convidados ilustres. E ela ia, gozava desses momentos, acompanhada dos filhos pequenos. Nas ruas, nos aeroportos, nas sessões de autógrafos, era festejada e agarrada, despertando amores jamais imaginados. Mas quando morou na favela do Canindé, quando passava fome e andava andrajosa, provocava asco e repulsa. Com o livro e a fama, ninguém mais lembrava disso e a beijavam, disputavam fotografias e sua assinatura.

Como a família reagiu à transformação de Carolina de Jesus em um símbolo da resistência negra e feminina?

A glória da Carolina, pode-se dizer, é uma glória póstuma. Em vida, foi bem fugaz a fase de grande assédio da escritora, sobretudo no período em que Quarto de despejo ficou em voga, mas não chegou a cinco anos. Para a família, a sensação ainda é de espanto. Conceitualmente ninguém esperava que, cerca de 40 anos depois de revelada pelo então jovem jornalista Audalio Dantas, Carolina fosse ter a sobrevida que tem, com um crédito de estar traduzida para 13 idiomas e 42 países, entre Estados Unidos e Japão. Entre os diários usados para construir o argumento do filme Preciosa [de Lee Daniels] está Quarto de despejo. Sair da favela e alcançar o mundo, vender em pouco tempo mais de um milhão de exemplares é um feito extraordinário. Não há um dia sequer que a família não tenha que dar depoimentos ou falar de Carolina Maria de Jesus.

Carolina de Jesus enfrentou muito preconceito linguístico pela forma como escrevia. É uma questão superada?

Carolina enfrentou, enfrenta e vai enfrentar eternamente o preconceito linguístico. Independente de qualquer sucesso, ela vai ser sempre a semianalfabeta, moradora de favela e negra. O preconceito linguístico é ainda mais danoso porque a elite supostamente letrada do Brasil não se reconhece como nação, acha que o povo não sabe falar e que quem fala o melhor português é quem é de Portugal. E quando se depara com o coloquialismo da linguagem usada por Carolina e o seu histórico como negra e favelada, o peso ainda é bem maior. Passado o lançamento de Quarto de despejo, os livros de Carolina foram esquecidos ou jogados no lixo, logo o local de onde ela retirava os cadernos velhos para reescrever a sua melhor história de vida.

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