Exaurir a tolerância: os vínculos poéticos de Manoel Ricardo de Lima

Exaurir a tolerância: os vínculos poéticos de Manoel Ricardo de Lima

 

como chegamos tão baixo
no plano humano
imaginando apenas uma
casa de tolerância

Manoel Ricardo de Lima, Xenofonte

estamos condenados a mover-nos
exclusivamente dentro do
espaço da hegemonia ou podemos,
ao menos provisoriamente, irromper
seu mecanismo?

Slavoj Žižek, Elogio da intolerância

 

um livro pequeno, sem numeração nas páginas, feito um a um na ilha do desterro, sob o cuidado da editora Cultura e Barbárie, no ano em que Maria Gabriela Llansol faria 90 anos. um livro pequeno como esse, com as edições numeradas à mão, nos faz sempre pensar sobre a extensão do que se escreve, sobretudo quando é o caso de uma obra que parece querer ser ainda menor e dizer menos do que diz.

intitulada Xenofonte, esta nova recolha de poemas de Manoel Ricardo de Lima dá-se a ler pelo espectro do que representou a vida deste empenhado discípulo de Sócrates, historiador ateniense que dedicou ao menos três obras para a defesa de seu mestre: Apologia, Memoráveis e Banquete. na tradição clássica, Xenofonte figura como testemunha de um julgamento cujo processo se deu, por um lado, na condenação de um sujeito conhecido por seus valores anacrônicos e, por outro, na inviabilização da defesa, considerando que os termos socráticos não tolerariam um vocabulário datado, convencional e instrumentalizado pelo poder da época.

como sabemos por meio de Xenofonte e Platão, Sócrates teria sido injustamente condenado à morte por impiedade para com os deuses antigos, traição ao regime vigente e ameaça à constituição democrática. tal como Bartleby, contumaz personagem de Herman Melville, o filósofo preferiu não (se defender), instaurando, por meio do silêncio, um limite e uma exceção às leis vigentes. “é a hagiografia/ do silêncio e o silêncio não é nobre, beira a mudez”, escreve o poeta. nesse ponto, as dimensões diminutas do livro fazem jus à recusa discursiva, numa escala movida por uma retração ainda mais enfática.

a rigor, o livro se monta como uma escavação sobre um léxico e sobre imagens alarmantes de perseguições, contrabandos, tribunais históricos e míticos, para simultaneamente se desmontar, ao decompor esta série de ações violentas em peças distribuídas pelos poemas.

implicando a literatura e história, assim como as ladainhas e as mentiras repetidas sem parar, o lema do livro parece ser o seguinte: “penetrar sempre mais/ na vida do século/ até o retorno das/ guerras napoleônicas”. o poeta recria as guerras e os impérios, dentro e fora do tempo, como se revirasse as ruínas do que nos tornamos. uma das histórias mais presentes na obra, para além do espectro xenofôntico, refere-se à fortaleza babilônica de Semíramis, identificada com a rainha assíria Sammut-rãmat, e descrita pelo poeta como “grega, armênia”, “a puta da babilônia, o mal/ de amor”, rainha cujo esposo figuraria na Bíblia como aquele que desafiou as leis de Deus, construindo uma alta torre para adoração dos astros. os rastros desta narrativa, escrita também em grego e armênio, é exemplar do modo como se arma a engrenagem do livro, impulsionada pela variação dos idiomas (que os gregos ignoravam, “orgulhosamente monolíngues”) e em parte até pela intraduzibilidade das palavras, colocando em jogo a logologia, na qual o ser e os acontecimentos não passariam de um efeito do modo de dizer e, naturalmente, dos modos de se equivocar no dito.

afinal, como defende este outro logologista, Lacan, “uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistirem nela” (O aturdito, p. 492). nesse sentido, Semíramis não seria mais do que os acidentes que certo idioma lhe permitem ser, sobretudo por ter participado do desencadeamento da confusão das línguas, como se narra no livro das Lamentações (em hebraico, ekah) sobre a invasão babilônica da cidade de Jerusalém, em 586 a.C, e retomada por Manoel: “ekah, 586, sentada e solitária cidade/ populosa, tributária, chora, amarga, sem/ amantes, os amigos agora inimigos/ cativeiro,/ aflição, sem descanso, coração e água, mão e/ vida, fome e rua, nudez e sexo”.

da ágora para o ágon, da cidade para a agonia e da areté entendida como força física para uma areté traduzida como virtude discursiva, restar-nos-ia fazer experiência da tagarelice e dos acidentes que nos constituem. uma vez que o gesto do poeta se volta para a escavação das diversas camadas de desertificação, aflição, invasão, cansaço e amnésia, numa escalada em que o discurso acaba por revelar seu exterior, tudo se torna matéria para esta espécie de máquina de emaranhar paisagens: textos perdidos, extraviados, referências entrecortadas, versos sem aspas, línguas não traduzidas, datas soltas. é com essa matéria errática que trabalha o poeta-operário, na fábrica que não existe para reordenar as classes e os pertencimentos, nem reagrupar as línguas e os mapas. porém, com o desejo de fazer alguma justiça, a instabilidade discursiva e pronominal é quase um pressuposto desse mecanismo, como também Sócrates é descrito por Platão a partir de sua impermanência: “um homem sábio, que procurava a causa dos fenômenos celestes e os segredos ocultos no seio da terra e que tornava mais forte a razão mais fraca” (Apologia, 18b-c).

a posição, aqui, é a que cada língua toma para testemunhar um mundo próprio, para vincular-se ao real da força ou da fraqueza que ao mesmo tempo cria. somados ao grego e ao armênio, armam-se simultaneamente o alemão de Paul Celan e Ingeborg Bachmann, o latim dos nomes científicos das plantas, o italiano de Pasolini, o inglês do cantor Mississipi John Hurt, o francês da atriz Yvonne Furneaux, o julgamento em russo de Mandelstam. nota-se, assim, que não haveria unidade por baixo da variação dos idiomas; a dança das variantes é que produz mundos distintos sob essa terra. mesmo no português, muitos são os reais inventados, como testemunha um dos últimos moicanos, Belchior, a respeito do Nordeste. também Manoel Ricardo de Lima, “pobre diabo sul americano”, nascido na cidade de Parnaíba, no Piauí, pode dizer da indústria modernizante sudestina, que muito lucrou com a ficcionalização desta região, destinada a “esmagar a pobreza/ impedi-la de comer, de/ respirar/”, poema cuja continuidade poderia se dar neste outro, de Xenofonte:

e isto porque esta terra
não é forçosamente feita
para humanos, mora-se
sobre um coquetel tóxico
de substâncias que podem
destruir tudo, a qualquer
momento

neste campo minado do poema, naturalmente não se sobrevive sem ser afetado pelos vínculos que se trava. por vezes o poeta cita Hölderlin, na esteira da leitura feita pela escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, em seu texto Hölder, de Hölderlin, cujo título mistura o verbo em inglês to hold, “abraçar”, “segurar”, a Holder ou Holunder, “sabugueiro” em alemão, e ainda ao nome do poeta que na Idade Média significava “diabo”. narrando a aproximação deste à casa-poema, a escritora detalha: “como cada um chegou com sua árvore – Hölderlin com quaercus, Joshua com pinus lusitanus, Giordano com a sua nogueira” (2000, p. 25). quem frequenta a obra de Llansol sabe que Joshua refere-se à forma hebraica do nome de Jesus Cristo, e Giordano é Giordano Bruno, teólogo italiano também acusado, como Sócrates, de impiedade. os três personagens, nesse caso, operam como duplos do dissenso e da profanação, e não são menos importantes quando pensam a natureza dos vínculos poéticos que atravessam céu e terra, e que nos ligam uns aos outros. o pensador italiano é quem nos diz:

esse vínculo que ata universalmente, o qual não pode ser designado por um só nome, não ata sob a espécie e os sentidos do corpo, pois o corpo não desperta os sentidos por si mesmo, mas por intermédio de certa força existente no corpo e que procede do corpo. Logo, esse vínculo que ata é chamado metaforicamente de mão (Os vínculos, p. 19).

mão esta que além de vincular a leitura à escrita, reescreve e interpreta o tratado de Giordano:

quando o corpo não
desperta os sentidos
por si mesmo, mas
por meio de uma força existente

(no corpo)

que ata e pode
ser mão que
se dobra e se
inclina para tocar
um outro
(Xenofonte)

no Xenofonte de Manoel Ricardo de Lima, a mão está para um saber perder, o que a textualidade hölderliniana explicita, através da revelação de uma língua-puro-alfabeto. outrora o que foi a experiência de um apagamento de si, de uma desmultiplicação como afirma Llansol sobre o poeta alemão, parece converter-se aqui em uma despossossesão, rarefação da própria língua em direção à letra: “khgljgm – a língua de hölderlin”.

estariam, portanto, os idiomas exauridos, por demais traduzidos, assimilados, corpos cujo dom e enigma já foram há muito espoliados? Xenofonte nos chega pouco tempo depois de O método da exaustão, publicado pela editora garupa em 2020, e cujas questões ecoam de um livro a outro, roçando qualquer coisa como a possibilidade de uma vida reduzida ao seu estado menor, mais discreto, menos possuído. a pobreza é este impensado dos tempos, a esbarrar, inclusive, numa espécie de devir imaterial da língua:

reação: ler e tocar o
imaterial antes da
linguagem, dança,
entranha e o que
nunca foi escrito
(O método da exaustão, p. 152).

certo é que, trabalhando na impossibilidade, por meio dos disparates temporais e linguísticos, de uma espectrologia composta por murmúrios de personagens em esquecimento, a obra poética de Manoel parece ir contra aquela velha política, a da boa vizinhança, a “pacificar” as segregações. seja em termos de uma tolerância racial, religiosa, étnica ou linguística, o viver junto jamais pode ser pensado como apaziguamento gerado pelo convívio à distância, e sim como um compromisso, o exercício de uma paixão, uma dança em que a diferença se faz tocar verdadeiramente. “porque honra só existe entre ladrões” nos declara em Xenofonte. com o sentido restaurativo da violência de Walter Benjamin e amparado por Slavoj Žižek, o poeta luta contra o multiculturalismo despolitizado, um dos principais componentes ideológicos do capitalismo global, a operar o mercado de maneira inconteste graças à pregação da tolerância. em outras palavras,

nesse estado de falsa democracia
o monstro é linchado, a vítima
linchada continua a ser o
diferente, o monstro, a tolerância
cria o gueto, através
da tolerância o diferente vem
à tona, minoria aceita, murada, a
tolerância é o espectro mais atroz
da democracia
(O método da exaustão, p. 107)

Manoel Ricardo de Lima arma esta espécie de armadilha das línguas, identidades, origens e corpos, explodindo o terreno contra qualquer tipo de uniformização da equivocidade. valendo-se de um certo curto-circuito da repetição, de uma espiral cuja volta involuntária vence as resistências de um vocabulário viciado no “mesmo” e no “outro”, nota-se que é preciso retornar ao erro, vincular-se ao acidente, ao desastre, ao informe. citado pelo poeta, o verso do poema “Corona” de Celan, “Es ist Zeit, daß es Zeit wird”, traduzido por Márcia Sá Cavalvante Schuback como “É tempo que o tempo venha a ser”, vem sublinhar a relevância do anacronismo. nas palavras do autor de Xenofonte: “não há nenhum luxo/ como o de não viver/ no presente”. deixar o tempo incompleto, deixar-se estranho, estrangeiro, intraduzido, para que a violência possa se reencontrar, num ponto qualquer, com o gesto revolucionário, é o que se transmite nestas obras: “aprender/ o comando e o motim/ o quanto antes e desmontar/ tudo”, afinal, “a terra/ ainda é simultaneamente/ redonda/ tanto em ferrara/ quanto no maranhão” (O método da exaustão p. 122).

“mais do que esperar por um/ teste redentor do mundo, subir/ paredes lentamente” (p. 129). suportando não só o peso do próprio corpo, mas também o peso da contraditoriedade do mundo, trata-se de imaginar outras posições para levitá-lo, desmedi-lo, descontinuá-lo, como uma criança que ainda não sistematizou o impossível e por isso pode dar outros usos às coisas, inadaptando-se ao meio. corre-se risco – aliás, é preciso correr riscos, custar-nos a vida, o eu, o rosto, a medida do próprio, a unidade do livro –, neste gesto de intolerância para com a mesmidade e a mediocridade. Xenofonte, a propósito, com todo o seu corpo e com o incorpóreo, faz jus ao inaudito, e por quê não, ao aturdito, vinculando-se ao que o acusado deixa de dizer, resguardado o direito (ao) fora da cena, à exceção – estratégia esta que reitera o estribilho do método da exaustão, ao fazer da recusa da narrativa, um negar da relação entre o discurso e o que nos é imposto como realidade intratável:

uma
narrativa?
não, nada
de narrativas
nunca mais

 

Carolina Anglada é professora de literatura na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos da Linguagem (POSLETRAS – UFOP).

 

 

 

 


[por Redação]

Em 2015, a antropóloga francesa Nastassja Martin morava com famílias even, da Sibéria oriental, continuando suas pesquisas sobre a vida e cosmogonia indígena do Grande Norte subártico. Em uma expedição pelas montanhas de Kamtchátka, após se afastar de seus companheiros de escalada, encontra e batalha contra um urso. Mordida na perna e na cabeça, perde pedaços da mandíbula, da maçã do rosto e dentes, mas consegue se livrar da fera ao acertar-lhe o flanco com uma picareta de gelo. Após diversas cirurgias para reconstruir os ossos (primeiro na Rússia e depois na França), Nastassja Martin precisa encarar o fato: o que significou a passagem do urso pela sua vida? Com a ajuda de seus companheiros even e sua experiência etnográfica, chega a apuradas reflexões sobre a separação entre natureza e cultura, pensando no que ficou de urso nela e no humano que ficou no urso após o encontro quase fatal.

As 12 histórias que compõem o livro tem como pano de fundo a fictícia Buriti Pequeno, cidade no interior de Goiás. Além da cidade, as narrativas compartilham entre si personagens e situações familiares, lembrando um pouco o Vasto mundo de Maria Valéria Rezende. O envelhecimento do tocador de sinos da paróquia, a destruição acarretada com a monocultura da soja, uma escapada do trabalho para namorar em uma gruta isolada, a tensão entre o morador do interior e jovens endinheirados da cidade, enchentes e caprichos da mulher do prefeito são alguns dos enredos das histórias, que percorrem uma gama variada de personagens e situações em torno de Buriti Pequeno.

O segundo romance da ganhadora do prêmio Nobel de Literatura, a norte-americana Toni Morrison, centra-se na história de duas amigas, Nel Wright e Sula Peace, e sua relação com a cidade na qual vivem, uma pequena comunidade negra no centro-oeste estadunidense. Amigas de infância, as personagens funcionam como pares antitéticos: Nel vem de uma família estruturada, regrada e conformada às regras sociais; Sula vive em uma pensão com a mãe e a avó, dona da pensão, e cresceu naquele ambiente caótico e desregrado. Depois da adolescência, Sula vai embora da cidade, e, quando retorna 10 anos depois, depara com um ambiente que lhe é hostil e desconfiado. A antiga amiga seguiu os bons preceitos familiares, está casada e com filhos, enquanto Sula não constituiu família e escandaliza a sociedade com seu forte senso de liberdade. Seu retorno, então, marca uma virada na comunidade, que precisa lidar com aquela mulher encarada como uma bruxa diabólica e destrutiva.

 


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