Privado: Entrevista sobre ERA MEU ESSE ROSTO no Estado de Minas

Privado: Entrevista sobre ERA MEU ESSE ROSTO no Estado de Minas
ENTREVISTA / MÁRCIA TIBURI:
No barco, em alto-mar – Carlos Herculano Lopes
Autora mergulha na ficção com Era meu esse rosto, narrado na primeira pessoa
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 07/01/2013

Filósofa e escritora – professora de filosofia na Universidade Makenzie (SP)
Quinze anos depois de ter começado o processo de escrita (intervalo em que publicou vários livros de ficção e filosofia), Márcia Tiburi lança
Era meu esse rosto, narrado em primeira pessoa. Mais que romance de formação, o livro representa mergulho profundo no universo ficcional e mítico da infância da autora, passada no interior do Rio Grande do Sul, onde ela nasceu e viveu boa parte da vida. Dois fios narrativos conduzem a trama: no primeiro, temos o passado do narrador, seu lugar de origem, sua infância e as pessoas conhecidas, especialmente o avô. No segundo, o personagem vive no estrangeiro, chamada V. Autora da Trilogia íntima (com os romances Magnólia, A mulher de costas e O manto), e professora de filosofia na Universidade Makenzie (SP), ela acredita no poder transformador da literatura. “Escrever torna a vida algo suportável e maravilhoso”, disse, em conversa com o Estado de Minas.

Publico abaixo a versão antes da edição do jornal.

1)Depois de Trilogia íntima você chega com Era esse meu rosto, no qual dá uma guinada na sua literatura, e escreve o que talvez seja o seu livro mais lírico. Como se deu esta mudança?

Era Meu Esse Rosto foi o primeiro livro que comecei a escrever. Isso data de 1998. A trilogia foi escrita no meio do caminho entre 2001 e 2008. Considero-a a minha literatura selvagem e, ao mesmo tempo, mais científica, no sentido de que ali se reúnem dois impulsos antagônicos que se mostram o tempo todo: emoção e razão. Havia ali uma vontade de expor a ossatura dos textos (como se eu quisesse mostrar como foi feito um quadro), de ir até a carne das palavras e, ao mesmo tempo, fazer sua anatomia. A trilogia é meu “Gödel, Escher, Bach…”.

Em Era meu Esse Rosto eu não penso que minha literatura tenha “evoluído” em um sentido metafísico, mas que ela tenha construído certa reconciliação dos impulsos que antes apareciam em tensão. Não sei se consigo me expressar. Mas penso que o que há de racionalidade e de frieza na trilogia neste Era meu Esse Rosto dá lugar ao afeto. Só que o afeto que eu descobri nesse livro é o frio. Tem muita melancolia, muita dor, muita crítica, mas também muita beleza, muita poesia, muita alma nesse livro que faz um elogio do frio, o frio onde eu nasci, o frio que eu carrego comigo e que me faz chorar.

2) “Dois fios narrativos conduzem Era esse meu rosto”, como bem observou Regina Zilberman: o primeiro, com o narrador voltando ao seu lugar de origem, e o segundo na estrangeira cidade de V. Foi dolorida esta volta aos locais físicos e aos abismos da infância? Escrever este romance foi também uma espécie de catarse?

Sempre é uma catarse no melhor sentido das tragédias em geral. O que é uma família senão o lugar onde se vive a tragédia de existir? Para usar outro termo de valia psicanalítica, Era meu Esse Rosto foi uma “elaboração” muito forte, sim.  Eu descobri muitas coisas sobre o mundo de onde vim escrevendo esse livro. E descobri que eu não importo de modo algum neste mundo, o que me trouxe um estranho alívio. Descobri meu narrado, descobri V., descobri o frio como um afeto. No entanto, eu já sabia que a literatura é sempre um barco que vem nos salvar em qualquer naufrágio. Eu não posso viver sem esse barco no alto mar que é a vida e onde sempre podemos nos perder.

3) Há muito tempo esta história estava represada, esperando a hora de ser jogada para fora?. Por falar nisto, como costumam nascer as suas histórias?

Foi a história que eu mais elaborei, a que mais escrevi e reescrevi. Normalmente eu reescrevo muitas vezes. Sou muito obsessiva e até alguns de meus erros são propositais (nem todos, mas eu gosto do erro na literatura). Demorei a publicar porque o texto assim o exigia. Ele pedia calma e demora. Temos que saber respeitar nosso textos, nossas criações, nossos processos. Eu realmente acho que as histórias nos aparecem, nos surgem de algum lugar inconsciente (nosso e da própria vida) e que nos tornamos ligados a elas. No livro novo que estou escrevendo atualmente também está sendo assim. Posso até não gostar do livro, mas ele se faz com vida própria. Eu me sinto mais “meio” pelo qual surge uma história do que “dona” das minhas histórias. É a sorte da estranheza inquietante que vem nos procurar quando escrevemos literatura.

4) Até que ponto a sua formação em filosofia costuma interferir na sua literatura e vice-versa?

Acho que qualquer formação entra no modo como fazemos literatura. Artistas visuais, médicos, funcionários públicos, jornalistas… quem escreve não deixa sua aprendizagem fundamental e sua história de lado, pois elas constroem também uma posição diante de e na vida. Eu acho que o fato de eu desenhar também afeta tudo isso (Kafka, Bruno Schulz, Ana Miranda, quantos escritores foram artistas visuais, plásticos, gráficos?) Eu não quero demonstrar teses filosóficas com meus romances, mas sei que o fato de ler e escrever filosofia me afeta e os afeta. Verdade também que eu sempre escrevi filosofia tendo uma atenção radical ao texto. Filosofia é também literatura e literatura é, a meu ver, filosofia. E ao mesmo tempo, num paradoxo maravilhoso, elas são antagônicas no ponto onde filosofia é diálogo e não escrita nem narrativa…

5) Uma pergunta indiscreta: você foi fundo nas suas próprias raízes para escrever o romance, ou é a ficção que dá a tônica ao livro?

Um romance é sempre ficção. A literatura nasce no nascimento do narrador. Há uma história e um modo como esta história pode ser contada. Mas a base é a vida, uma impressão, uma ideia, uma sensação, uma pessoa que vira personagem. Só que a “verdade” da vida não existe para a literatura.  No entanto, este livro tem muito a ver com a vida que eu vivi. É o que daquele mundo poderia virar literatura.

6) Era esse meu rosto  teria sido possível sem a Trilogia Íntima? O que esse livro significa para você?

Teria sim, pois de certo modo ele é anterior à trilogia enquanto, foi escrito ao mesmo tempo. Não são projetos tão estanques como podem parecer. Mas enquanto a trilogia dá lugar a todas as minhas obsessões com a linguagem, Era meu Esse Rosto tem uma atenção mais fenomenológica à vida, à memória, ao concreto, ao real no sentido da experiência que podemos compartilhar. Não sei se um escritor consegue se explicar muito bem, mas eu imagino que a trilogia seja o conjunto dos livros que escrevi para dar conta de uma relação conceitual com a literatura, enquanto que Era meu esse rosto foi escrito para leitores em aberto, para o mundo, para quem quiser gostar dele. Tenho leitores que preferem a trilogia e outros que preferem Era meu esse rosto. Mas penso que poucos percebem como estão conectados. O livro no qual estou trabalhando agora tem muito a ver com o Era, mas tenho um romance pronto (que não sei se público antes ou não)  que tem muito mais relação com a trilogia. Quem tivesse a coragem de ler tudo veria a diferença e a unidade de tudo isso.

7) Você também é daqueles escritores que acreditam no poder “transformador” da literatura?

Eu só acredito nisso. Eu só escrevo por isso. Por outro lado, eu também acredito escrever torna a vida algo suportável e até maravilhoso.

8) Ultimamente você também está escrevendo crônicas. Como está sendo esta experiência de trabalhar histórias curtas?

Ah, tenho descoberto coisas lindas. Olha se tiver tempo http://www.vidabreve.com/uncategorized/faye-dunaway

Aí, nesta crônica publicada hoje, acho que o finalzinho responde sua pergunta:

Faye Danaway voltou para a foto como quem escreve uma crônica, Patrícia me contou a história como quem escreve uma crônica e eu escrevo esta crônica porque as crônicas melhoram nosso olhar sobre o mundo.

Assim, cada um pensando o que quiser sobre aquilo que vê e lê, aprendemos que somos donos de nossos olhares e ideias e que podemos compartilhá-las com generosidade porque há uma verdade na singeleza das coisas que nenhuma metafísica é capaz de alcançar. Esse olhar nos livra do mal do mundo porque nos faz pensar mais, dia após dia, sobre o que significa viver e porque a vida se dá no cotidiano, no mais banal que se torna o mais difícil de perceber…

9´) E seu processo de criação, como acontece meio a tantas viagens? Escreve quando está na estrada?

Nos últimos anos eu tenho viajado muito nessa vida de militante da leitura pelo Brasil afora. Tenho escrito contos e crônicas talvez por isso. O texto curto combina mais com a viagem curta que é do tipo que eu venho fazendo. Mesmo assim, em meio a toda andança, escrevia um romance desde o final de 2009 que terminei neste ano de 2012. E comecei outro logo em seguida. Claro que as condições concretas interferem na disciplina, em todo o processo de criação. Mas eu consigo abstrair facilmente, sobretudo se estou em lugares impessoais. Eu deixo os problemas pra lá, as chateações e me ponho a escrever. Tem gente que acha que eu escrevo muito porque sou muito disciplinada. Que nada… eu sou disciplinada porque abstraio das horas chatas com muita facilidade. Com todo o respeito, acho a vida cotidiana muito desinteressante, por isso prefiro entrar na minha torre de observação e reflexão fictícias e ficar por lá. Pode ser num aeroporto, no ônibus, no hotel. Eu escrevo como quem simplesmente está no mundo e não tem literalmente nada melhor para fazer.

O novo livro já tem título, mas ainda não quero dizê-lo, até porque vai demorar até ficar pronto. Mas percebo uma afinidade profunda com Era Meu Esse Rosto. Tanto de forma quanto de conteúdo. O conteúdo desta vez é o pai que em EMER era apenas uma sombra do avô. O narrador é novamente um homem que elabora a questão paterna. Um homem que viajou uma única vez para nunca mais voltar. A história se passa entre o sul do Brasil, desta vez a ilha de Desterro (atualmente Florianópolis) e Berlim. Eu comecei a ter muito sonhos depois do Era meu esse rosto que me levaram a escrever este livro. O resto é ainda segredo, em alguns aspectos até para mim, pois não gosto de planejar o livro como um todo. Literatura não é roteiro e é preciso guardar espaço para a surpresa até mesmo de quem escrever.

Nestas tantas viagens que você faz por aí, qual é o país que tem se descortinado para você?

neste caso, quando escrevi EMER fui duas vezes à região da Itália onde me inspirei para escrever V (este quase foi o título de EMER). Precisava entender o lugar de onde vinham os ancestrais do meu narrador – que também eram os meus. Mas o que aconteceu comigo ultimamente é que conheci muito do Brasil, não o Brasil antropológico, mas o Brasil urbano, o Brasil de todo dia. Só que tenho atração profunda pelo sul e esse gosto, esse pathos, sempe retorna. Atração mística e trágica. Daí que meu próximo livro retome aquele mundo. Aquele frio ao qual quero dar lugar na minha literatura. Para mim a literature é esse lugar sem lugar, esse não lugar onde temos o direito de existir. Por isso gosto de vive rem São Paulo. Me sinto auto-exilada aqui. Vivendo numa ilha. Tem muita gente nessa ilha e é muito interessante viver por aqui, mas é certamente um lugar para o qual fugir. Talvez por isso a ilha, o exílio e o desterro tenha aparecido no novo livro. Por que preciso entendê-los ou porque me dizem algo ao qual preciso prestart atenção.

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