Encrencas abolicionistas: por uma ética das tensões produtivas

Encrencas abolicionistas: por uma ética das tensões produtivas
Ao que chama de feminismo carcerário, a filósofa Angela Davis opõe o feminismo abolicionista (Foto: Divulgação)

 

Arreda homem que aí vem mulher!

Algumas interlocuções abolicionistas são bastante embaraçosas. Particularmente, eu fico desanimada quando vejo um(a) abolicionista tentando ensinar a feministas que a prisão não resolve o problema da violência e que o sistema de justiça criminal é racista. Tudo que me ocorre nessas horas é balbuciar “elas sabem”.

Vejam bem, se existem forças autoritárias no conjunto incomensurável dos feminismos, não tenho qualquer interesse em dialogar com elas. Tudo que pode se instaurar aí é uma tensão improdutiva que se caracteriza pela pretensão de submeter a interlocução divergente à derrota. Não vejo como, nem porque, eu deveria dispender energia em uma relação desse tipo, sobretudo se eu posso, se tenho acesso, a conversações feministas comprometidas com as lutas abolicionistas e antirracistas, mas que nem sempre entendem os processos de criminalização da mesma forma que eu. Neste caso, a partir das nossas divergências, é possível instaurar uma tensão produtiva em que as pessoas envolvidas estão empenhadas no fortalecimento mútuo, pessoal e político. Dito de outra forma, não vejo muito sentido em criticar, por exemplo, demandas punitivas do feminismo radical, se eu posso dialogar com as demandas de feminismos negros, decoloniais, queer.

Portanto, quando me deparo com a defesa de um processo de criminalização (primária ou secundária) por parte das feministas com as quais posso estabelecer uma relação produtiva, assumo a compreensão de que elas sabem perfeitamente do que estão falando. Mais do que isso, entro no debate consciente de que, sabendo de todas as questões envolvidas, sobretudo raciais, elas fizeram uma opção que não se resume a simplório punitivismo.

Dito isto, reciprocidade é bom e todo mundo gosta. Recentemente, passei a ler elaborações feministas que respeito muito, mas que produziram em mim um certo desapontamento. Por isso, demorei a me manifestar. Mas o fato é que me refiro à crítica que algumas feministas, negras, decoloniais, queer, ou seja, de vários campos que considero de tensão produtiva, vem tecendo aos abolicionismos a partir do conceito de esquerda punitiva, cunhado por Maria Lúcia Karam.

Não vou fazer aqui um histórico da pertinência deste conceito. Limito-me a dizer que foi importante na trajetória de muitas gerações de abolicionistas, mas recentemente, quando voltado contra as demandas punitivas de minorias, não tem produzido nada interessante, salvo um imenso desgaste dos(as) interlocutores. A autora, inclusive, parece fazer questão de se manter distante das formulações feministas mais atuais.

É por isso que eu me pergunto por que o desgaste e o que pode surgir de interessante quando, para criticar os abolicionismos, apela-se para o conceito de esquerda punitiva e o quanto ele é insuficiente para responder às demandas de minorias em processos de criminalização. Existem formulações mais recentes, mais mobilizadas por pesquisasdores/as e ativistas mais jovens, e que são da cepa de abolicionistas interessados/as na interlocução produtiva com os feminismos ou que habitam, ao mesmo tempo, abolicionismos e feminismos.

É o caso do feminismo carcerário, noção utilizada por Angela Davis, intelectual, militante, abolicionista e feminista negra. Segundo Davis, o feminismo carcerário “infelizmente acredita que problemas como a violência contra a mulher podem ser efetivamente resolvidos pelo uso da força policial e da prisão”. A este feminismo, ela opõe o feminismo abolicionista. Ao mesmo tempo que Davis possui, portanto, sensibilidade, acúmulo teórico e histórico militante incontestáveis para as lutas feministas, ela se recusa a apostar em demandas punitivas e elabora sua crítica a estas últimas de maneira bastante generosa, perspicaz e, o mais importante, disponível às contradições que o debate suscita.

 

 

Desta forma, volto à pergunta,
por que insistir em criticar os
abolicionismos por meio do
conceito de esquerda punitiva,
se existe um conceito como
feminismo carcerário se opondo
às demandas punitivas em nome
da proteção das mulheres?

 

 

Não seria um atalho, um caminho fácil, tentar enfrentar a crítica que abolicionistas fazem aos feminismos por meio do conceito de esquerda punitiva? E, uma vez que se consiga desbancar este conceito, eventualmente demonstrando que, hoje em dia, ele é usado como forma de desqualificar feminismos, não restaria a questão proposta por Davis, com muito mais pertinência?

Não desconheço as formas pelas quais abolicionistas se servem do conceito de esquerda punitiva para desqualificar discursos feministas e não acho descabido que se responda a este tipo de ataque. Ao mesmo tempo, quando me volto para o campo da crítica – que não é o mesmo que ataque – fico pensando que o cerne da questão, ou seja, as demandas punitivas vindas das minorias, e mais especificamente, dos feminismos, permanece intocado. As encrencas nos limiares de abolicionismos e feminismos envolvem questões sobre pertinência, eficácia, eficiência, racismo, dentre outras, que os processos de criminalização agenciam.

No final das contas, a impressão que me dá é que partilhamos um estado geral de fuga do problema. De um lado, abolicionistas que ainda não entenderam que certas mobilizações punitivas de movimentos de minorias não significam, por parte destes grupos, um desconhecimento sobre o sistema de justiça criminal ou sobre a prisão. Mais do que isso, não significa uma aposta em sua legitimidade, mas uma medida emergencial. De outro lado, muitas feministas parecem bastante dispostas a enfrentar Karam, mas não Davis, cuja crítica vai no mesmo sentido, porém, delineando uma tensão produtiva, interessada no fortalecimento mútuo, em meio a diferenças e divergências, e que não será superada caso o conceito de esquerda punitiva seja tornado obsoleto, pois ainda nos restará lidar com o feminismo carcerário.

De certa forma, o que estou propondo aqui é que nossas críticas recíprocas assumam o compromisso de não buscar um atalho nas interlocuções mais frágeis e que não partem do reconhecimento mútuo da pertinência de abolicionismos e feminismos dedicados à ampliação de vidas vivíveis. Que as nossas reflexões possam trabalhar com o que há de mais sofisticado em cada uma das forças em luta porque elas não apenas não pretendem se destruir, mas se percebem vitais uma a outra.

Assim, vamos ao que interessa: feminismo carcerário é um conceito pertinente? Aponta um problema real entre feminismos? Em que medida abolicionismos têm dificuldade em responder às demandas urgentes de vítimas? Existe produção abolicionista com “propostas concretas” para as vítimas? No nosso próximo encontro, vou deslocar a vítima para o centro do debate abolicionista como forma de tentar conversar com as críticas mais pertinentes aos abolicionismos, vindas, sobretudo, de movimentos de minorias e, exercitando o que proponho hoje: situar o debate em tensões produtivas, buscando conceitos, instrumentos de análise, chaves de leitura, autores e autoras que, ao trabalharem entre abolicionismos e feminismos, reconheçam uns aos outros como sujeitos de suas próprias formulações e, ainda além, como aliados.

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia


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