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(Foto: Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2020 é “renascimento”.


Estou alimentando minha insônia, convencido de que uma ave fênix presa dentro de uma churrasqueira seria uma versão esquisita do mito de Sísifo. Pensemos, esse negócio de renascer tem um custo, e não é necessariamente bom. Renascer pior é como dizem por aí, “no início tava ruim, aí chegou o fim e parecia que estava no início”.

Camus imaginou o Sísifo feliz, a mim coube imaginar uma fênix triste de ter de morrer e renascer mais de 2020 vezes, aprisionada, sem poder levantar vôo. Se é o desejo pela altura que redime Sísifo, nossa ave em questão não tem redenção. Uma fênix a passarinho no seu eterno retorno alimentando o fogo com suas entranhas e acumulando cinzas. Não admira estarmos nesse vasto deserto.

Caminhamos parados, do mesmo lugar para o mesmo lugar, onde início e fim se misturam… nossa estrada tem se transformado em esteira, estéril. Tantos recomeços e tantas promessas… Cada ano um novo projeto, cada mês alguma nova série ou temporada, cada semana uma nova versão beta, cada dia reiniciar milhares de vezes computadores, aplicativos ou celulares, que não reiniciam melhores que antes e que não nos fazem melhores do que fomos ontem.

E isso faz pensar… tem gente que renasce tantas vezes que não da tempo de
crescer. Mais um ano periga começar, e sinceramente espero que não seja recomeço de quase nada. Ao contrário, que possa encerrar as razões delirantes de tantas mortes, subjetivas e objetivas. Setenta e cinco anos passados dos quarenta de Drummond, estamos colocando os problemas, então prossigamos à resolução, não é hora de recomeçar, mas de avançar. Portanto que não seja reinício, mas que seja continuidade e luta, resistência; criar vida aonde antes era (ou ainda é) pó e brasa. Transformar deserto
em oásis, planta por planta, manancial por manancial.

Marona falava das pombas sujas e alegres, pois bem, mais vale ser uma pomba suja e feliz que uma fênix mítica, presa, vítima do eterno retornar às cinzas que não consegue se emancipar. Os deuses olímpicos sabiam muito bem, o infinito recomeçar é uma maldição.

Sigamos adiante, mancos e obstinados, incompletos, mas íntegros, sujos e alegres.

Carlos Souza Filho, 29, cursa
especialização na UERJ, mora
em Niterói, RJ. Formado em
Relações Internacionais, pela
UFRJ, e poeta em construção.

 

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