A dor da cura

A dor da cura

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


 

Quando uma doença aparece, não é uma parte do corpo que sofre isolada, mas o corpo por completo. Intuitivamente, sabemos que um organismo somente funciona da maneira como deve, na medida em que suas partes gozam de plena saúde. A biologia nos ensina esse copertencimento sistêmico entre as partes dos organismos vivos complexos. Devido também à integração interdependente, as doenças e infeções conseguem espalhar-se e atuar em metástase. Num primeiro momento, parece que um paralelo pode ser feito com o corpo social, com a comunidade. Entretanto, essa analogia não é simples.

O organismo vivo desenvolve-se fisiologicamente num movimento interno próprio, que em sua lógica físico-química é apolítico. O corpo social — se quisermos tratar de sua complexidade como um todo relativamente encerrado — não se desenvolve da mesma maneira. Roberto Esposito, filósofo italiano, esclarece que os termos latinos communitate (comunidade) e immunitas (imunidade) possuem a mesma raiz munus. O termo munus representa um tributo ou obrigação prestada para partilhar o convívio em comunidade. Portanto, a comunidade seria o viver com munus, a partir de uma certa obrigação geral. Por outro lado, immunitas é aquilo que nega o exterior à comunidade, aquilo que não faz ou não pode fazer parte dela por alguma razão.

Dessa forma, o sistema imunológico de um organismo vivo é um processo de defesa de sua comunidade orgânica, seu complexo fisiológico, que expulsa ou impede que algo prejudicial faça parte do sistema. A questão em jogo é que a unidade que o próprio organismo entende por sua comunidade não é constituída politicamente. Ela é um processo físico-químico que se desenvolve organicamente em relação ao seu ambiente externo. O corpo social não estabelece sua unidade da mesma forma.

Antes de olharmos para a estratégia de imunidade contra um fator externo, devemos olhar para o que é esse organismo como um todo. O corpo social não tem a mesma autossensibilidade do organismo vivo para se entender enquanto sistema acabado. O corpo social é transformado politicamente através da história para constituir sua unidade, e existe um termo bem específico para isso: a soberania. A comunidade política não é somente o território em que está circunscrita, mas as partes fundamentais que ela compreende para o seu funcionamento geral. Dessa maneira, a comunidade se protege, cerca suas fraquezas e estrutura um ótimo sistema de combate a patógenos — sejam eles guerras, crises econômicas ou epidemias.

A soberania determina, antes de tudo, como se organiza os entes da comunidade de um corpo social, como ele é unificado. Concomitante ao processo de constituição de uma soberania que engloba certa nação, forma-se o sistema de imunidade desse organismo político. Tendo tal referência, podemos pensar em como foi constituída a soberania de nosso país, qual sangue foi derramado, quais vidas são colocadas em jogo, qual ideal de nação é protegida, enquanto comunidade, num cenário de pandemia. Diante da ameaça de um patógeno, surge o que realmente precisa ser defendido. Isso nos permite compreender não apenas como agir politicamente, mas que comunidade política é essa que se defende.

Para início de conversa, não é demais lembrar que nossa redemocratização anistiou torturadores da recente ditadura civil-militar. Sem a devida atenção a uma comissão da verdade que investigasse os desaparecidos políticos, demonstramos nossa histórica intimidade com a irrelevância da contabilidade de mortos sociopolíticos — hoje os desaparecidos políticos são as subnotificações de mortos pela Covid-19. Nosso fantasma colonial da escravidão do povo preto nunca se afastou, e continua conjurando a morte dessa parte de nossa comunidade. As políticas europeias de quarentena são incapazes de lidar com nossas favelas, cada organismo social possui sua própria soberania. A questão é que enquanto a Europa e a Ásia “curam-se” da praga, no Brasil procura-se curar a economia, ela que está doente. Isso se deve também ao seguinte fato: os corpos que morrem, em sua insuportável maioria, são os que não importam enquanto parte da comunidade. Os corpos que, estatisticamente, mais morrem não são os de idosos com comorbidades de todas as classes sociais, mas a parcela carente de recursos econômicos, sem isolamento, atirada à contaminação obrigatória nas ruas do caminho para o trabalho.

Cicatrizes são marcas de um evento, que muitas pessoas têm orgulho de carregar. A marca é a lembrança de uma batalha vencida, de uma força que a vida, em sua complexidade psicofisiológica, conseguiu ultrapassar e continuar. Nós, enquanto corpo social enfermo, não teremos cicatrizes para nos orgulhar, teremos feridas profundas. Em algum ponto, a pandemia será relativamente controlada. Apesar disso, viveremos a partir desse momento como aquele que encara todos os dias um membro amputado, sentindo a dor da ferida sempre quando chove.

 

 

Ítalo Nascimento, 30, é carioca e tem dois
problemas: hérnia de disco e coração mole.

 

 

 

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