‘Democracia e amor’: um mergulho no espetáculo à brasileira

‘Democracia e amor’: um mergulho no espetáculo à brasileira
No filme há uma sucessão de fotografias, documentos históricos, propagandas e memes (Reprodução/Democracia e amor)

 

Quarenta e um anos depois da pergunta que mobilizou a curiosidade da massa brasileira em torno do mistério sobre o assassinato do personagem Salomão Hayalla na novela O astro, de Janete Clair, a organização sintática da dúvida organizando a vida do país se repetiu. Agora com outra personagem, desta vez em situação histórica real. Hiper real. Os tiros que tiraram a vida de uma liderança negra, lésbica e periférica que combatia as milícias na cidade do Rio de Janeiro, em março de 2018, fizeram ressoar a curiosidade coletiva e o sonho de justiça sobre a autoria de um crime, e inconscientemente, o coro da novela de 1977 foi parafraseado, como uma das chaves para a compreensão do presente: “Quem matou Marielle Franco?”.

Democracia e amor (2020), curta-metragem dirigido por Rubens Rewald e Tales Ab’Sáber, recoloca em questão os efeitos profundos das superficialidades da indústria cultural entre nós. Em um exercício cinematográfico que mimetiza as ligações inconscientes dos múltiplos estímulos, é possível percebermos o poder dos produtos culturais na constituição de uma ideia geral que se impregna na sociedade brasileira, quase sem mediações conscientes. Como em uma linha de montagem industrial, instantâneos da cultura brasileira se encaixam em um jogo de livre associação, deslocamento e condensação cinematográficas que impressionam de modo enigmático. Como um sonho absurdo, o trabalho do filme torna manifesto pensamentos latentes, muitos deles não menos absurdos, da sociedade brasileira. Se algum dia a vida no Brasil pôde sonhar por si só, sem as violentas interferências dos interesses colonialistas, é uma questão ainda sem respostas. Absurdo como forma, aliás, que não cessa de se reproduzir no âmbito social e que emerge na cultura como uma identidade possível para um país sem fundamentos.

Quando Paulo Emilio Sales Gomes observou com olhar clínico o estado de subdesenvolvimento do cinema brasileiro a seu tempo, ele demonstrou que isso não se devia exclusivamente a um atraso técnico, industrial, mas que, além da situação de periferia e dependência no parque mundial do desenvolvimento das forças produtivas, havia um verdadeiro abismo cravado na própria história cultural do Brasil. Seguindo a linha, Roberto Schwarz viu no país um “abismo histórico real” entre o arcaísmo dos valores e a modernidade dos meios; algo que também Glauber Rocha imaginou até como ocupação pelos colonos portugueses em uma estranha modernidade voltada para outro lugar, impressa na imagem de Terra em transe. No quadro amplo de nossos descentramentos e heteronomias, Paulo Emílio fala de uma ocupação, diferente de uma dominação, como destaca Antonio Candido em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento (1980):

“É sintomático que Paulo Emilio não tenha usado a distinção corrente: dominador e dominado. Usando ocupante e ocupado, ele acentua o caráter de transplante (do que vem de fora e ocupa). Ao mesmo tempo, abre uma perspectiva sobre o que se chama o caráter nacional – traço próprio do ocupado. E deixa claro que por baixo da cultura do ocupante há traços recalcados, que podem ou não aparecer nos produtos da cultura.”

Diferentemente dos demais cinemas nacionais subdesenvolvidos, dizia Paulo Emílio, o Brasil não teria um repertório cultural tradicional, que passasse de algum modo por genuíno, que conflitasse em algum ponto com os valores estéticos ocidentais, pois a violência do processo de colonização por aqui foi duplamente eficiente em se tratando de apagamento e dissolução de qualquer tipo de identidade nacional baseada na vida dos habitantes originários. Se por um lado, as culturas dos povos ocupados se esvaíram em um genocídio sangrento, por outro, seus traços de memória sofreram com a diluição cultural imposta pela mestiçagem e pela força dos meios modernos própria dos ocupantes.

Do sincretismo religioso às comemorações hipócritas, como o dia oficial do Índio, as imagens tradicionais foram perdendo o fundamento material e antropológico, e, a partir do momento que começaram a ser utilizadas pela comunicação de massa, transformaram-se em elaboração superficial de uma cultura imaginada pelos ocupantes – que a essa altura também não eram mais os ocidentais – que invadiram as terras americanas do Brasil, para eles vazias de todo tipo de valor fora do comércio mundial. O turvamento dos marcadores culturais da diferença entre ocupantes e ocupados fez com que o Brasil adentrasse na modernidade de algum modo sem qualquer natureza de identidade, sem nenhum caráter, o que se via (e se vê) era “dilaceramento cultural”.

Depois de uma malfadada tentativa de emplacar o discurso da democracia racial no século 20, da harmoniosa mestiçagem entre as três etnias violentamente forçadas para o interior deste espaço, o Brasil atual encara a explosão do conteúdo latente do que foi recalcado pelas políticas unilaterais de construção estratégica da “identidade nacional”. Ocupantes e ocupados, postos bem delineados para o olhar crítico, segundo Salles Gomes, assumem papeis dialéticos no plano da superfície: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”.

O dilaceramento causado pela falta de cultura original e pela ocupação cultural técnica ocidental de europeus e de estadunidenses nos jogou no turbilhão de imagens fetichizadas criadas pelo capitalismo imperialista, do outro sobre nós e, também, de nós mesmos sobre nós. Como, então, o imaginário coletivo brasileiro se identificaria sem essa ocupação? Seria Democracia e amor o trabalho de elaboração onírica que canaliza os desejos fetichizados da memória brasileira ao juntar uma constelação múltipla de imagens retiradas da cultura de massas como encobridoras dos conflitos que a sociedade que as produziu abriga? Seria o sonho do sujeito Brasil aquele que se formou assim?

Os procedimentos técnicos do filme, como destacou Tiago Ferro, provocam estranhamento e identificação, distanciamento e aproximação. Provoca algo que toca no inconsciente das gerações que viveram sob o signo da esperança de “um país melhor”, um Brasil que foi “projetado, esboçado na Constituição de 1988”, que precisa ser urgentemente resgatado. A montagem que sonha é a que tenta sinalizar para o despertar. A associação de imagens, palavras ditas pelos narradores e as músicas que abrem e fecham o filme se ligam contiguamente por elementos que surpreendem, estão imantados em seu conteúdo manifesto. À primeira vista seriam até absurdas, mas elas guardam sempre sua lógica nos múltiplos pensamentos latentes que evocam. Lula, multidão, protesto. Carregariam essas imagens a ideia de democracia? Belchior, Rivelino, Hortência e Paula e Beatriz Nascimento garantiriam alguma espécie de amor?

Mas a coisa não seria um sonho se tais significados fossem límpidos. Ao voltarmos nossa atenção distraída de espectadores um instante para o presente histórico vivido, vemos que não temos nada disso – embora tenhamos tudo isso, em imagem. Vemos que as manifestações de superfície, da indústria cultural brasileira e da política espetacular não foram suficientes para saciar nosso desejo civilizatório de nos tornar um país de “primeiro mundo”, ou “uma nação de fato”, como diz o filme. Isso porque, tão superficiais quanto o regime daquelas imagens, foram os avanços históricos brasileiros.

Mais do que o sabor fugaz da mercadoria que a breve demonstração histórica de estado de bem-estar social deixou na boca dos brasileiros, seria preciso resgatar e enfrentar os traumas que pipocam em sintomas como o genocídio da juventude negra, os números aterradores de violência doméstica e da deliberada e criminosa exclusão da massa uberizada pelo golpismo de 2016, em franco alinhamento com o neoliberalismo mundial. E estas imagens também estão todas lá, na mesma linha do tempo do sonho, agora traumático. Democracia? Amor? Ainda somos um país? Já fomos um país? Há para nós um lugar no mundo? Rodrigo Janke Lucheta, pensado o filme, nos sacode e lembra que sim: “Viemos de algum lugar, iremos para algum outro. O não-lugar é uma invenção de que nos convenceram, o pântano mental em que nos afundaram.”

O contraste das imagens selecionadas, tendentes ao infinito, indica também como é sonhar na era da explosão digital. No filme surge uma sucessão de fotografias, algumas livremente manipuladas sabe-se lá por quem, documentos históricos importantes, peças de propaganda comercial e ideológica, memes, retratos que sofrem um nivelamento falsificador. Silvio Santos e Antonio Candido como impressões semelhantes, enquanto mera imagem disponível, não se diferenciam em relação à intensidade que suas impressões provocam no decorrer do curta-metragem. Uma miragem, pois nem Silvio Santos é uma imagem trivial, nem Antonio Candido é apenas uma imagem. Essa aplanação da atividade cultural brasileira que se mostra em um filme que aposta na sobreposição de imagens “entremeadas por silêncios” sonoros e visuais, como bem reparou Marcos Lacerda, é também uma consequência do nivelamento empregado pelos meios de comunicação de massa.

 

O filme evoca o modo
que o nosso mundo
reduz tudo ao seu
mesmo fluxo do
espetáculo.

 

 

No continuum vertiginoso do filme que mimetiza esse Brasil que sonha pelo imaginário da sociedade eletrônica, o encontro com a verdade possível se dá na sua interrupção, em algum ato possível no entre, em que Francisco Bosco intuiu estar o “valor de verdade” do filme: “entre as imagens, entre as imagens e as palavras, entre as canções e as imagens, entre tudo isso e o silêncio. Se alguém soubesse decifrar esse entre, compreenderia subitamente o Brasil, como um aleph”.

Um país cuja cultura vem sendo o receptáculo de resquícios das tradições mutiladas dos ocupados e das energias permanentes do fluxo das mercadorias dos ocupantes, só pode se encontrar nesses frames vazios, nas pausas do narrador, nos milésimos de segundo disponíveis para pensar. O tempo entremeado da diferença, como vazio, aquém ou além do choque de tudo, a imagem massiva do mais ou menos o mesmo. É mais ou menos o que acontece na disputa pelo imaginário cultural e político do Brasil pandêmico. Sob os torrenciais tuítes mentirosos do líder e sua claque, tomados pelos fanáticos como equivalentes à verdade da ciência e replicados sem parar por humanos e robôs, é preciso procurar o silêncio para se pensar e lembrar do que verdadeiramente importa.

Ao misturar o kitsch com manifestações autênticas e fortes da cultura brasileira na sua timeline, Democracia e amor provoca o sentimento confuso que toca a verdade de nosso abismo histórico real. Somos cordiais e somos violentos, somos libertários e somos autoritários, somos carnaval e somos ditadura militar, somos o sujeito histórico que tateia a concretude e que fala de democracia sobre as imagens ambíguas, somos o eu lírico que declama o seu amor manifesto nas conversas cotidianas e nas palavras, somos Paulo Martins tentando conciliar poesia e política numa Terra em transe, essa nossa, somos o povo que ele cala, e o povo que se reorganiza da própria fragmentação para calá-lo. Somos profundas co(n)-tradições.

Se a montagem de Rewald e Ab’Sáber é vertiginosa, não deixa também de ser lúcida, e lúdica. Pois, apesar de tudo, capta as interpolações de um país que se fez sempre entre a vida pulsante e a morte iminente. Assim como a abafada vivacidade sonhadora do pré-64 que foi recalcada pela ditadura militar, nossas pequenas enormes conquistas democratizantes na distribuição de renda, na expansão das universidades, no sistema universal de saúde, nas políticas de moradia popular, infraestrutura no campo e expansão da produção cultural para além da classe média intelectual, estão sendo novamente reprimidas pela reação.

Um outro negativo, diferente do pensamento, que não suporta que os desejos mais profundos dos vencidos se materializem em um Brasil que enfrente o seu passado e construa a sua subjetividade a partir da heterogeneidade que lhe coube abarcar. Sem isso, ficaremos presos nas excitações provocadas pelos ocupantes, agora munidos de algoritmos, aguardando a polêmica do dia nas redes sociais como política. Afinal, para além do espetáculo, queremos realmente saber quem matou Marielle?

Diogo Dias é bacharel em Filosofia e professor e educador popular da Uneafro Brasil. No Programa de Pós-graduação de Filosofia da UNIFESP, prepara trabalho sobre Walter Benjamin e o cinema.


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