Decifrar o risco e recuperar a ética: a visão de Bolsonaro sobre a pandemia

Decifrar o risco e recuperar a ética: a visão de Bolsonaro sobre a pandemia
Nos discursos relacionados à pandemia, Bolsonaro joga em um campo fora do alcance das críticas dos especialistas (Foto: Adriano Machado)

 

Compreender as declarações do presidente desde o início da pandemia no país apenas pela sua confissão de incompetência (o que nem precisa ser entendido como “inépcia”, simplesmente lembremos a sua convicção de que crises não lhe competem) ou pelo seu negacionismo ignora a intenção dessas falas e seus efeitos. O campo semântico que é formado pelo discurso de Jair Bolsonaro tem um alvo claro: quando descreve a calamidade como uma “pequena crise” inflada pela “fantasia”, “neurose”, “histeria”, “pânico” e por “essa comoção toda”, o que faz é modular, disputar os valores do risco.

Para entender o que é essa disputa, é preciso suspender nossas certezas, não porque as posições mais recentes e mais consensuais das autoridades em saúde sejam duvidosas, mas porque a ciência, sozinha, não tem força normativa. O fato, por exemplo, de que as sequelas da covid-19 possam ser graves e duradouras não implica comportamentos. Tal dado será avaliado, interpretado pelos indivíduos, que de si e da observação dos outros gerarão práticas. É por isso que Bolsonaro joga em um campo fora do alcance das críticas dos especialistas: não se propõe aferir o real (o que o deixaria suscetível à culpa de não o aferir corretamente, como um cientista), mas discute como é que devemos viver.

A expressão “gripezinha” é, por tudo isso, um achado, pois não só afirma que o risco não é grande como diz que é conhecido. Sabemos como lidar com uma gripe, aceitamos que o cuidado caso fiquemos gripados ou resfriados recai sobre nós e reconhecemos que a prevenção não pode evitá-la: mais cedo ou mais tarde, vamos pegar – ou seja, há uma postura pronta, um modo de administração dos riscos da gripe, que é emprestado para a covid-19. Pode ser um erro, mas não difere em natureza de sugestões como “informe-se continuamente sobre a pandemia, evite sair de casa, use máscaras de qualidade”. Lá e cá, são proposições que não se reduzem a níveis de informação; tratam de ética.

Nesse campo, o discurso de Bolsonaro imprimiu ainda outra classificação: entre fortes e fracos, com duas figurações. Na primeira, a pandemia aparece como problema menor à população em geral, mas possivelmente grave para grupos específicos; daí surge a ideia de “isolamento vertical”, jabuticaba agora em desuso. Há nisso não só uma distribuição desigual dos riscos (mais para eles, menos para mim), mas a defesa de individualização das posturas (aja de acordo com seu nível de risco). Isso é poderoso na medida em que o que nos surge como irresponsabilidade e cegueira se constitui precisamente como um ser responsável (“sei do que faço de mim”) e um enxergar as coisas como elas são.

Essa doutrina é exacerbada na segunda figura, a divisão entre aqueles com “histórico de atleta” e aqueles que formam um “país de bundões”. Ouvimos tais falas pelos sensos do ridículo e do ultraje, mas elas contêm mais. A imagem do atleta se dilui na daquele que soube cuidar do seu corpo – isso diz, trocando em miúdos: caso tenha cuidado de si, seus riscos são menores; caso não, bem, só pode culpar a si mesmo. Já a pecha de “bundão” aparta os corajosos dos covardes – o corajoso é, evidentemente, quem aceita o risco. O presidente proveu uma versão condensada desse ideário quando argumentou: “Se eu me contaminei, olha, isso é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso”.

Cuidar do corpo, o atleta como idealização do profissional, as vontades de ser corajoso, realista, autônomo e independente, a tudo isso que prospera no discurso de Bolsonaro não basta contrapor números de adoecidos e mortos, pois que se fundam no que define o entendimento da doença e da morte. A ética é e será sempre espaço de embates.

 

Bolsonaro e o elogio do risco

Uma das pautas prediletas do presidente é, como se sabe, a liberação das armas de fogo. No debate público, esse desejo procura se justificar com apelos ao direito de autodefesa, os quais, de uma vez, defendem que o desarmamento impõe ao cidadão a riscos injustos (a polícia não é onipresente e “falta desarmar os bandidos”) e que o indivíduo é capaz de gerir riscos por sua conta (como gere um liquidificador, comparou Onyx Lorenzoni). É por isso que as estatísticas sobre a redução de homicídios com o menor acesso a armas não funcionam para eles como contra-argumento: esse dado opera em um outro âmbito e não atende às questões de que partem (para ser efetivo seria preciso atendê-las).

Outro esteio (circunstancial?) de Bolsonaro são os projetos de abatimento da estrutura estatal, encarnados (ainda?) no ministro Paulo Guedes e contrapostos, por exemplo, ao que chamam de “estado-babá”, grosso modo, propostas de bem-estar social. A imagem do estado-babá subentende muita coisa: a nação sob esse modelo ou estaria em fase de desenvolvimento incipiente ou estaria em situação inatural, protegida de riscos devidos; já no nível da população isso produz o corte entre quem precisa de suporte e quem sabe se virar sozinho – digamos, entre beneficiários do Bolsa-Família (ação que tira “dinheiro de quem produz” para dar “a quem se acomoda”, atacou Bolsonaro) e o empreendedor, lembrando que aí não é o trabalho o que dignifica, mas o não estar abaixo de ninguém.

Com efeito, o ideal ético do empreendedorismo serviu para que o santo fundador da fé cloroquinense, o microbiologista Didier Raoult, descrevesse o ídolo do nosso presidente, o desbancado mandatário americano Donald Trump. A piauí nº165 conta que o cientista delineia “a psicologia de Trump como a do ‘empreendedor’, em oposição a do ‘político'”, e define seus termos assim: “Empreendedores são pessoas que sabem decidir, sabem assumir riscos. E, em certa medida, decidir é assumir um risco. Toda decisão é um risco”.

Como todas as anteriores, essa declaração toma posição sobre o significado e o valor de riscos em particular e como devemos estimar as situações de risco — o estar em risco, o pôr-se em risco etc. Essas situações, por si só, podem nem ser apreendidas como tal e não determinam comportamentos. Antes, o sujeito subjetiva – vivencia as injunções.

Nem mesmo a morte – risco máximo? – é um conceito estável, impondo idêntico medo e cuidado em todos, não importa a situação. Um filósofo como Montaigne, por exemplo, debateu o quanto a vida não era um desejo absoluto, na medida em que há circunstâncias em que se prefere morrer. Quando Bolsonaro diz “todo mundo morre”, sim, isso não deixa de ser frieza e descaso frente ao povo que deve proteger – mas ainda assim é uma tese ética que fica de pé mesmo para além do presidente, e que se tem de disputar.

 

Sociedades definidas pelo risco

A sociologia tem elaborado análises de grande escopo em que o risco ganha uma função central. Nomes de destaque nesse sentido são Ulrich Beck – autor de Sociedade do risco: rumo a uma outra modernidade (1986) – e Mary Douglas e Aaron Wildavsky – de Risco e cultura: um ensaio sobre a seleção de riscos tecnológicos e ambientais (1982). Esses pesquisadores, tendo escrito há mais de três décadas, nos fazem ver a nossa atualidade por outros ângulos – nos dois últimos, por exemplo, vemos os antepassados da ideologia bolsonarista. Nossa base para discuti-los será The risk society and beyond: critical issues for social theory (2000), que reúne artigos de vários autores sobre a obra de Beck.

Segundo um desses textos, “Risk society or angst society? Two views of risk, consciousness and community”, escrito por Alan Scott, o sociólogo propõe que as sociedades de classes foram sucedidas por sociedades de risco. Tais estruturas se oporiam ponto a ponto. Em primeiro lugar, nas sociedades de classes os princípios básicos de organização seriam a coletivização e a tradição; nas de risco, a individualização e a reflexividade. Isso significa que, se antes o sujeito encontrava apoio e compreensão de mundo na pertença a um grupo, agora é reduzido a si e é “forçado a refletir em situações nas quais a reflexão não era requerida”. Também mudam de uma a outra a forma da desigualdade (posição social de classe para posição social de risco), o foco das questões de justiça (distribuição de recursos escassos/distribuição de riscos), os denominadores das experiências pessoal (fome/medo) e coletiva (consciência de classe/consciência do risco); por fim a meta das utopias (eliminação da escassez/eliminação do risco). Bolsonaro joga bem nesse jogo.

A análise de Douglas e Wildavsky segue por outra via. No texto “Risk culture”, Scott Lash afirma que os autores, em oposição ao social-liberalismo de Beck, escrevem em uma perspectiva conservadora e têm como alvo movimentos sociais dos anos 1960 e 1970. Seus conceitos, no entanto, são interessantes e podem – como Lash faz – ser utilizados em outras direções. Vamos a eles: a dupla distingue percepção de risco e risco real, elementos entre os quais “não há correspondência simples” e procura definir tipos de sociedade de acordo com o nível da sua aversão ao risco, nível que é condicionado pelo impacto dos fatores “autoridade, comprometimento, limites e estrutura” nas comunidades e cria culturas do risco.

São três: culturas hierárquico-institucionais, que selecionam riscos sociais (no sentido de perigos à integridade do grupo); culturas do individualismo de mercado, que selecionam riscos econômicos; e culturas sectárias marginais, que selecionam riscos naturais (como problemas ecológicos e, talvez, pandemias). A cada qual corresponde um “quem culpar” específico, sendo que nesse terceiro tipo estão, como indicamos, os movimentos sociais que Douglas e Wildavsky assaltam. Para pensar o Brasil, temos de usar os três tipos.

Como vimos, no discurso de Bolsonaro a mídia funciona como entidade de margem que “superdimensiona” riscos; no mesmo bolo podem entrar a esquerda, os governadores, o Supremo Tribunal Federal, a Organização Mundial de Saúde… o presidente categoriza quem precisar como séquito a ampliar a percepção do risco sem que os riscos cresçam. Por outro lado, efetua um diálogo entre os dois primeiros tipos, sintoma do casamento do militarismo e do neoliberalismo: hierárquico-institucional, Bolsonaro quis inventar uma ameaça chinesa à soberania nacional; individualista de mercado, entende o “quem culpar”, cito Lash, como “os indivíduos que não conseguem culpar a si mesmos”.

Podemos escapar dos liames da nossa sociedade de risco? Cabe citar Hegel em resposta: conhecer os limites é estar além deles. Por isso nossa defesa de que se iluminem quais valores estão em jogo e quais são os debates éticos engasgados (e que não se esgotam a não ser se tratados em seu âmbito). Encarar questões como as colocadas por Mary Douglas — o que é risco?, qual o custo da aversão ao risco?, quão seguro é seguro o bastante? — é decisivo. Atravessando a dúvida, poderemos nos recapacitar a criar visões de futuro.

Duanne Ribeiro é mestre em ciência da informação. Publicou pela Patuá a rapsódia As Esferas do Dragão (2019).


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