De mãos dadas

De mãos dadas
(Foto: Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2020 é “renascimento”.


A palavra “renascer” tem, como princípio construtor, a ideia de revitalização de algo pré-existente. É usada para momentos históricos, movimentos artísticos e, com bastante ênfase, para pessoas. A ideia de recomeçar com mais sabedoria do que se tinha a princípio é atrativa, tema de filmes e literatura, um desejo universal que colapsa diante da realidade da impossibilidade, mas que é agradável de ser fantasiado, ainda assim. É claro que se deixa de lado a obviedade de que, para renascer, é preciso morrer primeiro.

A escolha do que evanesce não é consciente, arrasta consigo tanto os males quanto os bens, e o resultado imprevisível do que ressurge tem o mal hábito de não ser um Éden, mas um novo conjunto de características a serem mitigadas quando seus extremos se colapsarem.

A cultura e a religiosidade nos afeiçoaram à ideia do renascimento como sinônimo de melhora. Sua versão cultural significou uma revolução das artes, do conceito de beleza, do olhar do homem sobre o mundo. O renascimento religioso se ampara em Cristo, na promessa de eternidade, no perdão absoluto, e se aconchega forte como ideia primordial desse conceito no coração dos que tem a menor das simpatias religiosas, e mesmo dos que não têm. São as primeiras referências a chegarem à mente desejosa de mudança, mas que eclipsam seus pares menos interessantes. É mais agradável apartar a memória de que o renascimento alemão após a Primeira Guerra Mundial foi sob a face de um regime violento que fomentou milhares de mortes, e a queda de Lúcifer gerou a ascensão das trevas.

O desejo de poder alterar a si mesmo, a política, ao mundo em suas mais diversas e expressivas camadas, é uma esperança – conceito que entrelaça seus dedos com o do renascimento em uma amizade bem aceita. Quando eu era mais nova, lembro-me de ler um texto sobre como a única coisa que Pandora foi capaz de prender em sua caixa foi a esperança. O autor fazia um questionamento incrivelmente válido e delicado: se a caixa continha os males da humanidade, a esperança não seria um deles? Essa ideia se afeiçoou a mim tanto quanto eu a ela e, desde então, essa é a única análise sobre a Caixa de Pandora que fez sentido em meu entendimento de mundo. Sim, a esperança pode ser um tormento. Porque, afinal, o que ela é a não ser um desejo, uma paixão pronta para consumir seu hospedeiro?

O problema com a esperança é o mesmo problema com o renascimento. Eles, em si, não levam a nada. São palavras que pipocam na boca das pessoas, mas que, se não são internalizadas em movimentos que as amparem, acabam como qualquer outro anseio, protegido na agradável embalagem dos sonhos. Renascer não é uma questão de conseguir emergir do fundo do mar, mas do que fazer com isso. Ele assume o rosto de quem alcança a praia primeiro – e não é necessariamente bonito.

Enquanto o mundo clama por ser restaurado, é válido pensar em quê. Nada muda pelo silêncio, mesmo incêndios precisam de oxigênio para se proliferarem. Então, o que é que vamos deixar morrer e o que vai se erguer por entre as cinzas?

Giovanna Barsotti, 22, mora em
São Paulo. É formada em Letras
com Habilitação em Tradução e
gosta de passar suas madrugadas
lendo e escrevendo.

 

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