A celebração da necropolítica do governo: de Antígona à desesperança dos bárbaros

A celebração da necropolítica do governo: de Antígona à desesperança dos bárbaros
Antígona levada diante de Creonte (Reprodução)

 

A indignação de parte da população brasileira diante da resposta do presidente quando perguntado sobre o número de mortes causadas pela Covid-19, no último dia 28 de abril, é contundente. Noticiada em larga escala e tendo recebido as piores repercussões, a fala de Bolsonaro afirma de modo inquestionável a celebração da necropolítica que o governo, mediante sua atuação, amparado pelo neoliberalismo, implementa em nosso país.

Entretanto, parece haver algo ainda mais cruel na encenação de Bolsonaro diante dos repórteres: o riso que a acompanha. Como se um despenhadeiro se abrisse depois do “E daí?”, senti uma vertigem, um asco profundo ao ouvir a risada que acompanha a piada perversa (“Sou Messias, mas não faço milagre”). O que esse riso significa, além de escárnio? Não significa que o presidente seja inadequado, vil, louco, ou não apenas isso. Ele sabe perfeitamente o que diz, o efeito que causa e possui bastante clareza em relação ao genocídio de parte da população, diga-se, dos mais pobres e vulneráveis, resultante da postura do governo para combater a crise da “gripezinha” que se agrava.

O riso, que valoriza a piada, legitima a prática terrível, mostra que o presidente está à vontade no território de horror que está criando, tanto quanto esteve à vontade quando proclamou o nome de Ustra, no Congresso Nacional, durante a votação do impeachment da presidenta Dilma. Naquele momento, o “e daí?” já estava posto, talvez não ouvíssemos como agora, mas lá estava: “Ustra (“e daí?”)” Como também em outra circunstância vociferou: “Não te estupro porque você é feia (“E daí”)? O silenciamento diante de tamanhas agressões, entre muitas outras que ele cometeu, discursivamente ou não, tem um preço alto, a falência múltipla dos órgãos democráticos, por isso talvez seja tão agreste o campo da rearticulação da esquerda, a mobilização da sociedade para enfrentar essa situação.

“E daí?” atua da mesma forma que o conhecido “Você sabe com quem está falando?”, analisado por Roberto Da Matta em Carnavais, malandros e heróis e é um alerta sobre o aspecto frágil e dual da cordialidade, esta que o presidente manifesta apertando mãos, sorrindo, alegrando seguidores e que, ao mesmo tempo, exacerba em ofensas e despautérios.  “E daí?” serve para acuar o interlocutor, colocá-lo em seu lugar de inferioridade: “Você sabe com quem está falando?” (com quem manda). Aliás, Bolsonaro diz reiteradamente: “Quem manda sou eu”. Contudo, para além do choque que o “e daí?” causa, está o riso e ele, sim, me parece um gatilho, o respaldo, a moldura tosca que enquadra as ações antidemocráticas, autoritárias, fascistas que se notam em toda a equipe do Planalto e nas carreatas a favor do presidente.

Não, não se trata de sarcasmo apenas, mas de uma concepção de governo em que os opositores políticos irão para a “ponta da praia” e em que os pobres merecem morrer. Para falar com Agamben, o homo sacer (homem sacrificial) é aquele que pode ser morto sem que haja punição alguma para a sua morte, pois ele está fora da jurisdição humana (“são os corpos absolutamente matáveis dos súditos que formam o novo corpo político do Ocidente”, diz Agamben em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua). Os corpos dos mais pobres, daqueles que não têm sequer meios para o autoconfinamento, sucumbem em maior número, sem acenos. Pensemos, por exemplo, nas periferias, morros, nas megalópoles brasileiras, nas aldeias indígenas, “e daí”? Daí que há algo mais grave e que toma proporções de matança: transformados em massa informe, enquanto alguns gargalham e buzinam, trabalhadoras e trabalhadores têm redução de salários, de direitos e mergulham em um processo em que a vida mitigada será mastigada com cacos de vidro.

É esta a proposta de Guedes e da equipe econômica – não se trata de socialização das perdas – como em algum momento Celso Furtado apontou, à propósito da Formação econômica do Brasil; não se trata da manutenção de emprego e renda. Trata-se, numa manobra ardilosa, de tirar proveito de um estado de emergência planetário para impor goela abaixo o resto das “reformas”, dar migalhas em seguro desemprego, cujo tempo de recebimento é limitado para os sobreviventes que não conseguirão se recolocar no mercado de trabalho, sem mencionarmos os indígenas, os trabalhadores sem terra, os moradores em situação de rua, o exército de desesperançosos, enfim, que perderá nos altos juros dos empréstimos bancários o “sol que a todos cobre”, como Cartola cantou em um samba.

Queimar a constituição, a CLT, incentivar a interrupção do isolamento em meio às ruínas de um país que mal pode ir às ruas para se defender é o modo com que este governo lança seu gás-grisu, “E daí”? O presidente não debocha dos mortos apenas, debocha do país inteiro, dos eleitores de periferia que o colocaram no poder – sim, porque a penetração de Bolsonaro, sobretudo por meio das igrejas evangélicas, nas periferias, é ainda considerável. Debocha e ri. Debocha e causa risos. Debocha e mata.

Podemos bater panelas, gritar, devolver os insultos, mas a matabilidade dos corpos não revela outra coisa a não ser que nem todos merecem sepultura. É preciso perceber que somos inimigos deste Estado e deste governo que foi eleito democraticamente e ri da miséria e da dor do povo. Aos mais pobres e também a todo e qualquer opositor serão negadas a dignidade e a sepultura, como o foram ao cadáver de Polinices, filho de Édipo.

Os óbitos no Brasil superam os da China. E quanto a nós, estamos mortos simbolicamente, pois mesmo tentando, mascarados, driblar a morte à espreita de nossos pulmões, vivemos a morte de nossa existência política (e somos todos seres políticos). Nossos cadáveres acumulam-se na Ágora, na rampa do Palácio, sob a brasa inócua dos “Dragões da Independência”, sob o crucifixo que paira no Congresso Nacional de um Estado que se diz laico. Nós, os bárbaros, não temos força (ou coragem ou meios) para desafiar o edito de Creonte, como Antígona o fez um dia para enterrar o irmão, cujo corpo era comido por abutres. Nós, os bárbaros, estamos em silêncio e talvez não regressemos jamais, como aconteceu aos bárbaros no poema de Kaváfis: “Porque é já noite, os bárbaros não vêm/ E gente recém-chegada das fronteiras/ Diz que não há mais bárbaros”

Os bárbaros no mundo de hoje continuam a morrer como aqueles do poema, seja porque são pobres, seja porque desafiam o sistema e tentam enterrar seus mortos e querem velá-los, querem chorar por eles. Neste Brasil neoliberal e assolado pela pandemia, o corpo da democracia agoniza diante de nós. Tomara que, barbaramente, consigamos fabricar respiradores para ela.

DIANA JUNKES é poeta, crítica literária e professora da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Poesia e Cultura – NEPPOC. É bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.


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