Crise e inquietação – como publicar poesia hoje?

Crise e inquietação – como publicar poesia hoje?

 

Mallarmé dizia que a poesia é a linguagem em estado de crise. Poderíamos parafraseá-lo, afirmando que editar poesia é a publicação em estado de crise.

E aqui não estamos falando de crise financeira, embora não acredite que ninguém em sã consciência pensaria em ter lucro editando poesia. A crise que falo é de como criar uma interlocução com a sociedade, conquistar leitores, trazer realmente a poesia a público. Uma crise muito mais profunda, que exige que se repense e se reinvente o que é editar poesia hoje.

Talvez para quem olhe de fora seja difícil entender o que estou falando. A poesia ganhou espaço na mídia e nas livrarias nos últimos tempos, com o estrondoso sucesso da obra completa de Paulo Leminski, com a realização de antologias badaladas e com o surgimento de novos poetas com bastante ressonância, como Ana Martins Marques e Angélica Freitas. E também nunca se publicou tanta poesia no Brasil. Atualmente, com as novas tecnologias de impressão digital que permitem edições sob demanda e auto-publicação, tem se editado centenas e centenas de novos títulos de poesia, quando não milhares, todo ano.

Mas é aí que mora o problema: o quão efetivo esses livros são para a difusão e o entendimento da poesia brasileira contemporânea? Certamente muito pouco. Apenas uma parcela mínima deles chega realmente às prateleiras das livrarias, e mesmo assim muitos nunca são sequer folheados por possíveis leitores. A grande maioria desses livros acaba tendo o alcance de pouquíssimas dezenas de pessoas, muitas vezes restritas ao círculo afetivo do autor, mantendo o seu conteúdo praticamente invisível ao público.

E como poderia ser diferente? Quem possui tempo e dinheiro suficiente para absorver uma produção tão grande de novos poemas? Como acompanhar, mapear, compreender essa produção? Se a subtração da mediação do editor de um lado facilita a publicação, de outro retira um filtro necessário, embora muitas vezes falho, para o leitor e o crítico. Importante ressaltar que um editor não é (ou não deve ser) apenas um “publicador”, não está apenas prestando serviços editorais, mas também é um primeiro crítico, um qualificador do conteúdo a partir do seu olhar experimentado e do diálogo com o autor.

A Azougue Editorial começou como uma editora de poesia. Com o tempo, foi criando um catálogo muito mais amplo, com a poesia representando uma parcela cada vez menor dos títulos. O motivo disso foi essa crise, que me atingiu em cheio: de repente percebi que estava apenas ajudando a abarrotar, sem estratégias novas, com novos títulos de poesia, as prateleiras já abarrotadas das livrarias. Não importava quão maravilhoso fosse o livro, o retorno era quase nulo. E não digo de vendas, porque como falei acima não dá para pensar em sustentar uma editora com poesia. A menos que a editora se torne apenas uma empresa de serviços editoriais pagos, o que eu nunca quis nem permiti que acontecesse. Mas de leitores. Preferi parar de editar poesia por um tempo, publicando apenas um ou outro livro que realmente me parecesse fazer sentido, e buscar criar uma outra estratégia de publicação que fosse realmente efetiva para a poesia.

Essa estratégia surgiu em 2014, durante a Copa do Mundo. Fui convidado pelo Heyk Pimenta para participar de um jogo de futebol entre poetas, no Sesc de Campinas (embora eu possa dizer que como jogador de futebol sou um bom editor). Fui para lá de carona no carro do Marcelo Reis de Mello, que junto com o Germano Weiss é editor da Cozinha Experimental, que cria belíssimos livros artesanais. Na volta de Campinas, conversando com o Marcelo, pensamos pela primeira vez em fazer algo juntos. A ideia foi uma coleção artesanal de poesia. Mas como sustentá-la? A solução que encontramos foi a assinatura: se conseguíssemos fidelizar uma parcela de leitores, poderíamos fazer a coleção com a calma necessária. Livros artesanais são caros, então precisaríamos de um recurso alto para garantir a publicação.

Chegando ao Rio, foram chopes e chopes tentando entender a natureza da coleção. Chegamos à conclusão de que seria interessante fazer algo que ajudasse a apresentar o que é a poesia brasileira contemporânea, que tivesse também um viés didático. Por isso, pensamos em antologias de poetas contemporâneos, seguida por uma entrevista com o autor. Desta forma, os livros apresentariam a obra e o pensamento do poeta, sendo um importante documento tanto para novos leitores como para pesquisadores de poesia.

E então começamos a contactar os autores, para conseguir as autorizações necessárias. As respostas foram ótimas: mesmo tratando com alguns dos mais importantes poetas em atividade no Brasil, tivemos um índice altíssimo de aceitação. Foram poucos que se negaram a participar, e mesmo assim a maioria deles por compromissos editoriais impeditivos (é surreal que possa existir impeditivos na divulgação de poesia, mas esse é outro assunto). Conseguimos criar um elenco invejável de poetas para nossas antologias.

Então veio o lento trabalho de pensar como seriam os livros e também de elaborar uma plataforma para as assinaturas. Em meados de 2016, finalmente conseguimos colocar no ar o projeto. Precisávamos, pela nossa conta, de ao menos 50 assinaturas para colocar os livros na rua. Parece pouco, mas é importante lembrar que é muito difícil um livro de poesia vender 50 exemplares em livrarias, e que o preço da assinatura era caro (50 reais ao mês, totalizando 600 reais para a assinatura anual). E conseguiríamos produzir no máximo 300 livros artesanais por mês, então esse era nosso limite de assinaturas.

Confesso que fiquei preocupado: realmente temia que o valor assustasse, e que mesmo tendo nomes de grande peso na lista dos poetas não conseguíssemos fazer o projeto. Além de tudo, em meados de 2016 o Brasil estava mergulhado em uma crise econômica e política sem precedentes, o que nos colocava em grande risco de ter um excelente projeto e um péssimo timing de lançamento. Mas felizmente o projeto foi muito bem aceito, e em duas semanas já tínhamos mais de 100 assinantes. Atualmente estamos quase chegando ao teto de 300. O projeto foi um sucesso.

A assinatura permite algo que muito me interessa: apresentar para os leitores um panorama diverso e abrangente da poesia contemporânea. Muita gente assinou por conta de um ou de alguns poetas, e está se surpreendendo ao receber em casa antologias de poetas que não conhecia. São diversas as respostas nesse sentido: “Nunca tinha lido o Rubens Rodrigues Torres Filho. É maravilhoso.” Se fosse uma coleção normal, possivelmente esse leitor compraria apenas os livros de seu maior interesse e ignoraria o restante.

Agora, estou criando em parceria com o poeta Pedro Rocha outro projeto, os Cadernos Volantes de Poesia. A Livro Volante é uma Kombi-livraria feita em parceria de quatro editoras: Azougue, Cozinha Experimental, Dantes e 7Letras. O projeto é rodar a cidade fazendo eventos, falas, leituras, e vendendo livros. Mas isso não faz sentido, se não criarmos livros com preços acessíveis ao público de rua. Então, em parceria com o Colaboratório, a gráfica artesanal dos estudantes da ESDI, decidimos criar os Cadernos Volantes, pequenos livros de até 32 páginas que serão vendidos por oito reais na rua. E uma das séries será a Cadernos Volantes de Poesia – livretos trazendo entrevistas e antologias de poetas jovens.

Os CVL seguem o mesmo princípio das Antologias Postais: publicar hoje está fácil. A questão é como realmente apresentar um produto que pode ajudar o leitor a mapear a poesia brasileira contemporânea, trazer elementos que permitam a compreensão cada vez maior do que são essas poesias, quais são as inquietações e os contextos que as movem. Cada vez mais acredito que é importante ouvir os poetas, não só pela sua poesia, mas também na reflexão que possuem em torno dela.

E é isso que me interessa: reinventar os modos de difusão da poesia. Torná-los mais atraentes, mais qualificados, mais acessíveis. Adequá-los aos desafios do nosso tempo. Uma crise permanente, que nos obriga a uma permanente e saudável inquietação.

Sergio Cohn é poeta e editor da Azougue. Como poeta, publicou “Lábio dos Afogados” (Nankin, 1999), “Horizonte de eventos” (Azougue, 2002), “O sonhador insone” (Azougue, 2006), “O sonhador insone – poesia 1994-2012” (Azougue, 2012), “Esse tempo” (7Letras, 2015) e “Um contraprograma” (Patuá, 2016).

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