Na contrarrevolução iliberal, o liberalismo nunca foi tão necessário

Na contrarrevolução iliberal, o liberalismo nunca foi tão necessário
A democracia liberal é o resultado da convergência do liberalismo, de um lado, e a democracia, de outro (Foto: Reprodução)

 

Caetano é hoje menos liberaloide do que era há 2 anos, disse no programa Conversa com Bial. Foi convertido a uma leitura desabonadora do liberalismo pelo militante e youtuber Jones Manoel, leitor de Domenico Losurdo (1941-2018), autor italiano que bate um bolão entre uma esquerda bem à esquerda no Brasil. Losurdo era um pesquisador de qualidade, com trabalhos interessantes de história da Filosofia, mas um militante comunista desses que via a sua militância como projeto de vida.

Era um “comunista non pentito”, não arrependido, aqueles contrários à dissolução do PCI no início dos anos 1990, e que se manteve até o final um combatente em defesa do comunismo. Tinha uma paixão pelo anti-imperialismo como tema e se bateu para que as categorias do imperialismo e do colonialismo voltassem a ser conceitos-chave na análise geopolítica. Na tentativa de defender o comunismo em um momento em que quase ninguém ao seu redor, depois da queda do Muro de Berlim, acreditava mais, Losurdo resolveu que o melhor caminho era, como diz o prof. Luís Felipe Miguel, da Universidade de Brasília, “empilhar evidência anedótica de que ícones liberais apoiavam ativamente práticas opressivas contra vastos grupos de pessoas. Liberais, mas escravagistas, colonialistas etc.”. Chamava isso de modo indutivo, o liberalismo era convenientemente reduzido ao capitalismo e em vez de simplesmente discutir com os autores e os livros-chave da tradição liberal, dedicava-se a mostrar a hipocrisia dos Estados liberais, principalmente Inglaterra e Estados Unidos.

Dessas premissas, nasceu uma corrente aqui no Brasil, que viria a mexer na fé liberal de Caetano, que simplesmente decidiu que o comunismo continua legal, porque o seu concorrente, o liberalismo, é um pilantra que diz coisas bonitas em público, mas é na verdade imperialista, colonialista e escravagista, para dizer o mínimo. E aí, claro, tudo se mistura, Kant com Paulo Guedes, Amoêdo com Stuart Mill, Rodrigo Constantino com Locke. E o liberalismo, vulgo o capitalismo, vulgo o colonialismo, como o nosso professor de história nos havia ensinado, realmente não presta.

Liberalismo é já uma expressão em si mesma polissêmica, como se depreende no fato de que nos Estados Unidos, por exemplo, liberal é o oposto de conservador, enquanto nessas plagas chama-se de liberal direitistas ultraconservadores. Além disso, é uma expressão distorcida voluntariamente, por má-fé política, por cálculos de ganhos. Aqui, todo sujeito que acha que o Estado é um monstro que devora a liberdade da economia e mete a mão no bolso do contribuinte simplesmente para roubá-lo, acha-se liberal. O “antiestatista” se considera a fina flor do liberalismo, com base exclusiva no fato de compartilhar com este a desconfiança com relação ao poder estatal. Frequentemente, não passa disso o que têm em comum.

Estes de quem José Guilherme Merquior (1941-1991), o último pensador liberal do Brasil digno deste nome, chamava de estadofóbicos. Merquior, naturalmente, se considerava longe desse antiestatismo vulgar e superado.

Diz ele:

“Em sociedades como a brasileira, não me canso de repetir, o problema do Estado não tem uma, mas, sim, duas faces. Pois a verdade é que temos, ao mesmo tempo, Estado demais e Estado de menos. Demais, certamente, na economia, onde, em diversas áreas, o Estado emperra, desperdiça, onera e atravanca. De menos, no plano social, onde ainda são gritantes – e se tornaram inadmissíveis – tantas carências em matéria de saúde, educação e moradia. Daí, em grande parte, o fogo cruzado num diálogo de surdos: de um lado, muitos (mas não todos) antiestatistas se ‘esquecem’ de ressalvar nossas tremendas necessidades na ordem assistencial; de outro lado, vários paladinos do ‘social’, a pretexto de justiça e igualitarismo, acabam condenando, em bloco, as posições antiestatistas, como se elas não incluíssem a crítica, bem justificada, dos feudalismos burocráticos na esfera econômica”.

Merquior é do tempo em que o campo liberal no Brasil tinha pensadores que se podia respeitar e não se dizia “representado” por essa horda ordinária e caricatural de hayekianos de grupos de WhatsApp e liberteens “da escola austríaca” de comunidades do Facebook, que aprenderam “liberalismo” pelos resumos de Hayek (ou von Mises) feitos pelo gênio-para-si-mesmo Olavo de Carvalho ou por algum yuppie palestrante de alguma startup autodenominada liberal. Agora, qualquer “empresário” como o Véio da Havan (é uma autodeclaração, tá?) e qualquer molecote de startups do “me dá um dinheiro aí” acha que é liberal só porque não gosta de pagar impostos, odeia programas sociais e acha a corrupção do PT (só a dele) uma abominação. Estadofóbicos vulgares.

O debate sobre o liberalismo fica facilmente poluído e as pessoas correm às facas antes mesmo de entender do que o outro está falando. Deveria ser um requisito, antes de qualquer interlocução, que se definissem os termos justamente para que não se perdesse tempo, como aconteceu esta semana, em discussões nominalistas. Só há ganhos em discussões quando as posições em disputa sabem exatamente do que o outro está falando. Se um entende liberalismo como Paulo Guedes, o outro o entende como Losurdo e eu o entendo com Stuart Mill, as chances de estarmos falando sobre a mesma coisa embora usemos a mesma palavra são nulas. E têm posições políticas que se aproveitam justamente desta confusão para fazer proselitismo e se valorizar. Assim para a direita bolsonarista, o liberalismo é uma estadofobia tosca e iliberal (porque liberticida e e anti-iluminista), enquanto para esquerda marxista vulgar, o liberalismo é qualquer regime egoísta em que os ricos se alimentam dos pobres. De caricatura vivemos.

Mas não há vantagem em deixar que cada facção faça um piquenique com o liberalismo. Permitir que Amoêdo, Paulo Guedes ou Constantino definam o que é liberalismo e se comportem como se fossem dono dele é como dar a Malafaia, Marco Feliciano e Damares Alves o monopólio da definição e da posse do cristianismo. Não tem cabimento.

 

Sinceramente, eu achei que qualquer pessoa que tivesse feito o Ensino Médio em qualquer lugar do mundo soubesse que a democracia liberal (ou democracia moderna ou representativa) era o resultado da convergência de dois movimentos intelectuais e políticos: o liberalismo, de um lado, e a democracia, de outro. Que todo mundo aprendia na escola que já houve liberalismo sem democracia – pois o liberalismo é basicamente um antiabsolutismo, inventado para mitigar ou enfrentar o poder absoluto no controle do Estado – assim como já houve democracia sem liberalismo. Mas que a partir do século XVIII rolou um match e, pouco a pouco, foram os dois juntando os trapinhos. Que a democracia trouxe como dote para o casamento o sufrágio e os princípios da igualdade e da liberdade políticas, enquanto o liberalismo trouxe para as nossas constituições o estado de direito, o governo de Leis em substituição ao governo arbitrário, e que foi a combinação entre a tradição democrática e a tradição liberal que produziu a democracia liberal sob a qual vivemos. Que certamente rola uma tensão na democracia liberal entre o que veio no dote da democracia (“que tal promover igualdade social por meio da igualdade política?”) e o que veio herança do liberalismo (“cuidado para o Estado não roubar a liberdade das pessoas”), mas que foram aos poucos se entendendo, de forma que cada um potencializa o melhor do outro.

A democracia, por exemplo, sustenta a liberdade política, mas a liberdade dos modernos é muito mais extensa do que a liberdade dos antigos, que veio com a democracia, porque inclui todas as liberdades civis, todas as liberdades que não podem justamente serem tomadas dos indivíduos pelo Estado. A democracia gosta de participação e deliberação, trouxe consigo a ideia de soberania popular, mas foi o liberalismo quem trouxe a transparência pública para garantir que o poder discricionário dos funcionários eleitos e nomeados do Estado não espoliasse, na prática, os cidadãos da sua soberania. Assim como trouxe a liberdade de consciência, a liberdade de expressão, de opinião, de reunião, de imprensa para assegurar que a soberania popular fosse protegida de coerções. Não é um casamento perfeito, mas uma considerável vantagem diante da concorrência representada pela aristocracia, pela tirania, pelo despotismo. Ou não? Toda constituição democrática moderna é também e necessariamente uma constituição liberal. Sabem o artigo 5º da nossa constituição? Sim, aquele sobre Direitos e Garantias Fundamentais, sobre liberdades civis? Não caiu do céu, veio do liberalismo.

Era o que eu sinceramente acreditava que as pessoas aprendiam. Mas parece que não.

Primeiro, para mostrar que o mundo anda de cabeça para baixo no Brasil, apareceram por aqui os tais “liberais conservadores”, como os autoproclamados liberais do Partido Novo. Mas, não, você não pode ser liberal e ser contra o aborto, a separação entre o Estado e a igreja, a liberdade de orientação sexual, ser a favor do racismo e de forçar uma religião. Isso é simplesmente incompatível com o liberalismo.

Agora me aparecem os neocomunistas de esquerda que resolveram que liberalismo = capitalismo = colonialismo = escravagismo = imperialismo! E nazismo, disseram. Onde essas pessoas foram à escola? Quantos livros leram? Como chegaram até aqui tateando no escuro de tamanha ignorância? Como a defesa da liberdade de expressão, de ir e vir e o direito de gozar da presunção de inocência até a conclusão um devido processo legal pode ser compatível com o fascismo ou com o nazismo? E eu que cresci aprendendo que a primeira providência do nazismo foi destruir uma a uma as instituições da democracia liberal, a começar pelo Parlamento, a instituição liberal por excelência.  As pessoas perderam o senso ou tem algum Olavão de esquerda ensinando isso?

Ora, ao Brasil, não sobra liberalismo. Estamos em falta. Desde, naturalmente, que liberalismo não seja reduzido à caricaturada da estadofobia, pois isso temos até demais. É essencial uma reação liberal neste momento em que uma revolução iliberal (autocrática, absolutista, violadora de liberdades individuais e de direitos civis) está em curso e com o joelho em nosso pescoço que quase não dá para respirar.

Como alguém iria defender o direito de uma mulher abortar se não a partir de um fundamento liberal? Como alguém pode defender Lula do conluio de Moro que compromete o devido processo legal se não com um fundamento liberal? Como se podem reivindicar direitos para os homossexuais sem um fundamento liberal?

Claro, se você está preparado para abrir mão de direitos individuais, de direitos civis, do direito de viver a sua vida como bem lhe parece sem precisar de aprovação do pastor ou do presidente, então tudo bem, você pode se dar ao luxo de ser antiliberal. Caso contrário, consciente ou não, saiba que deve as suas liberdades e direitos fundamentais à parte liberal da democracia liberal sob a qual, felizmente, ainda vivemos. Mesmo que aos trancos e barrancos e tendo como adversários a nova hegemonia política.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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